Cinemas de rua: o que se perdeu com o fim das salas de exibição em São Gonçalo
Cidade que já abrigou 16 cinemas de rua conta hoje, com apenas duas unidades e em shopping centers
Sobem os créditos, acendem-se as luzes e as imagens de uma fantasia cinematográfica na tela somem para dar lugar à vista vibrante do cotidiano urbano. Essa era a cena de quem tirava um momento no dia para ir ao cinema em São Gonçalo nos anos 50 ou 60, por exemplo.
De lá para cá, muita coisa mudou na cidade, nos espectadores e nos filmes. Com as salas não foi diferente; a mudança destas foi, antes, geográfica. Das ruas, elas foram para o interior dos centros comerciais e shopping centers, onde permanecem até hoje, em menor quantidade. Dos mais de 9 mil assentos distribuídos pelos 16 cinemas de rua que a cidade tinha, ficaram apenas 14 salas divididas em dois shoppings da cidade atualmente.
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A situação não é muito diferente do que ocorreu em boa parte das cidades do país, como explica a professora e jornalista Talitha Ferraz, dra. em Comunicação e Cultura pela UFRJ. A diminuição da presença do cinema nos espaços públicos - a partir, sobretudo, dos anos 1970 - faz parte de uma tendência internacional, que se refletem de forma mais aguda nas cidades “que estão às margens, que não são as grandes capitais”, segundo a pesquisadora.
São Gonçalo, apesar de ter a população de algumas capitais, não é uma - e, portanto, sentiu especialmente o impacto desse movimento. O resultado foi um apagamento de espaços tradicionais da cidade, como é o caso do Cine São José. Localizado na Rua Cel. Moreira Cesar, Centro da cidade, o imóvel foi um dos primeiros espaços de exibição da cidade, inaugurado em 1932. Décadas após seu fechamento, já não restam muitos vestígios do cinema, tanto em termos de dados preservados quanto no próprio espaço físico, que foi transformado em igreja ainda no séc. XX e hoje abriga uma concessionária de motocicletas Honda.
A história é parecida em outros locais da cidade. Na esquina da Praça Ciber Mendonça, em Venda da Cruz, já não há mais vestígios do Cine Vera Cruz, que foi o maior cinema de rua da cidade na época de sua fundação, em 1955, mas também se transformou em igreja. Segundo dados do relatório de uma distribuidora cinematográfica paulista, cedidos pelo pesquisador e colecionador Alexandre Miko, até 1969 o espaço tinha uma média anual de quase mil sessões, com 259 mil espectadores, mas faliu e abriga uma unidade da Igreja Universal do Reino de Deus há algumas décadas.
A pesquisadora Talitha explica que não é possível apontar um único “vilão” que tenha contribuído para a derrocada dos cinemas de rua. “São vários aspectos e, mais do que a variedade deles, é também o modo como esses aspectos vão se combinar entre si dependendo do contexto econômico, urbano, até muitas vezes político de determinadas localidades”, explica.
No caso do Estado do Rio, além de motivos mais gerais, como o advento das famosas tecnologias de mídia física, como VHS e DVD, alguns dos fatores específicos se relacionam com questões urbanas que fazem parte da história de São Gonçalo. Uma delas é a predominância de uma lógica “motorizada” de mobilidade, que tirou os espectadores das calçadas e aumentou a demanda por espaços com estacionamentos. Outra é a crise da segurança pública.
“A escalada da violência urbana faz com que as pessoas se sintam amedrontadas em realizar suas sociabilidades no espaço público. Então, em geral, elas vão priorizar os lazeres em lugares domésticos, em lugares fechados e em lugares que tenham uma vigilância, como os shoppings”, explica Talitha.
Um dos efeitos que esse deslocamento gera é a perda da identificação de espaços públicos. No Centro de SG, um desses locais foi a Praça Dr. Luiz Palmier, a praça “do Rodo”. Por anos, o centro comercial também era conhecido pela alternativa de entretenimento popular representada pelo Cine Nanci, que, segundo o arquivo da antiga Revista Fluminense de Estatística, foi fundado em 1949 e foi o maior cinema da cidade até a fundação do Vera Cruz, em meados dos anos 1950.
O movimentado cinema era um dos elementos que definia a paisagem da Praça do Rodo, mas foi substituído por mais uma loja de roupas no final do século. A praça do Rodo virou Praça da Marisa - nome do estabelecimento que funcionou no local até 2023 - e, enquanto as opções de compra e lojas aumentaram no local, as alternativas de divertimento popular diminuíram.
Para além da mudança de identificação dos locais, o fim desses espaços em praça pública afeta diretamente o acesso da população à cultura. “O exibidor nunca foi instituição de caridade, porque os cinemas eram pagos. Mas a gente sabe que o acesso, quando feito a partir da rua, é um pouco mais livre. A gente tem a possibilidade de entrar e sair, estar na rua diretamente. E quando a gente está num cenário em que o cinema só pode ser acessado dentro do shopping, isso quer dizer que essa pessoa tem que passar por alguns portões. Nós sabemos que, em realidades como a nossa brasileira, shoppings são enclaves fortificados, lugares vigiados, onde nem todos entram”, destaca Talitha.
Em termos financeiros, o acesso também é dificultado com a mudança e a concentração das salas em shoppings. “Quando você trancafia o cinema no shopping, você dificulta esse acesso porque, em geral, para chegar no shopping, você tem que pegar uma condução. Você não está com cinema ali do seu bairro. Tem que pegar transporte para chegar ou, às vezes, pegar o carro, pagar estacionamento. Chega no shopping e o cinema está ali, mas ele não é o ator principal. Então, tem essa questão de um certo sequestro desse equipamento para fora dos espaços de convivência que não são artificializados e [em direção] a espaços de consumo e não de convivência”, compara a pesquisadora.
Os efeitos finais desse processo extrapolam o campo das práticas culturais e atingem as próprias dinâmicas democráticas do cotidiano urbano. Para além do saudosismo despertado pelos costumes de outros tempos, a memória dos cinemas de rua de São Gonçalo também se relacionam com a memória de uma cidade com, talvez, maior potencial de relações de alteridade entre os gonçalenses.
“O audiovisual também enseja troca cultural e formação de coletivos, ele está ali inserido numa sociabilidade. Então, o cenário cultural também é um cenário de construção coletiva. Não é o cenário da similitude, da correspondência, onde eu só vou trocar com quem é igual a mim ou com quem eu conheça. A gente perde nisso aí um sentido democrático da inserção do cinema numa ideia de construção coletiva dos espaços de convivência”, conclui a pesquisadora.