Encontro celebra protagonismo feminino nas rodas de samba
Evento reúne sambistas simultaneamente em 32 cidades
A busca pelo protagonismo feminino, com uma rede de apoio e de afeto para as mulheres no samba, foi o motivo para a cantora, compositora e apresentadora Dorina criar o Encontro Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba, em 2017, considerado o maior evento de samba feminino do mundo. O encontro terá transmissão online simultânea em várias cidades brasileiras e em alguns países pelo perfil do Instagram @coletivotemmulhernarodadesamba.
Aos 65 anos, Dorina, cria de roda de samba, vê que este ritmo sempre foi de conquistas e de resistência. “Não é só um tipo de música; É também uma filosofia de vida que abastece as energias de quem está na roda. Achei que seria uma ótima cama para fazer esse projeto”, revelou em entrevista à Agência Brasil.
Com programação prevista para durar seis horas, a Roda de Samba vai contar com 30 mulheres, entre cantoras e instrumentistas. Além da Dorina, estarão presentes Ana Costa, Nina Rosa, Dayse do Banjo, Renata Jambeiro, Nina Wirtti, Lazir Sinval, Tia Surica, os grupos Herdeiras do Samba e Mulheres da Pequena África, sob a direção musical de Ana Paula Cruz e Roberta Nistra.
“O mais importante disso é que elas não abraçaram só o samba, mas a filosofia que o samba dá, que é essa coisa de se trabalhar junto, estar junto. Prevalece a história contra o racismo, contra a misoginia, contra a xenofobia. A gente trata disso tudo para poder fazer uma corrente que seja um mundo melhor, não um mundo da gente chegar ao poder, de ser mais que o homem no samba. Não é isso. A gente quer participar e passar essa coisa de afeto mesmo com segurança”, apontou.
O Renascença Clube, no Andaraí, zona norte do Rio, receberá a sétima edição do Encontro Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba neste sábado (30), bem perto do Dia Nacional do Samba, comemorado em 2 de dezembro. “A gente não pode ir muito para dentro de dezembro por causa das outras cidades, principalmente as fora do Brasil, quando é mais frio. A gente procura acertar uma data que seja boa para todas, porque o horário tem que ser o mesmo. Todo mundo no mesmo tom, com as mesmas músicas. A gente trabalha isso o ano inteiro para passar as músicas para elas ensaiarem”, relatou.
O Encontro vai se espalhar por 32 cidades, incluindo algumas fora do Brasil, no mesmo dia, horário e com as mesmas músicas. “O projeto foi abraçado por todas as mulheres, tanto que a gente começou com 11 cidades, já chegamos a 43 e este ano estamos com 32. Possibilitou muitas mulheres a se conectarem com elas mesmas, se conectarem com a nossa história, que a gente não é só isso que falam, mas muito mais”.
Dorina conta que o projeto segue a linha de outros que já desenvolveu para ampliar o conhecimento do samba. “As minhas ideias surgem sempre para movimentar, para que as coisas melhorem. Foi assim com Suburbanistas que comecei a cantar o subúrbio carioca junto com Luiz Carlos da Vila e Mauro Diniz, foi com Mulheres de Zeca, já existia o Mulheres de Chico, e fizemos Mulheres de Zeca [Bloco carnavalesco e espetáculo musical em homenagem ao cantor e compositor Zeca Pagodinho] no subúrbio e assim foi também o Encontro de Mulheres. Esse avançou e conquistou várias cidades que a gente nem esperava conquistar. Tem em Goiânia, tem Belém, três cidades do interior da Bahia e tem no Acre”.
Fora do Brasil, mulheres de várias cidades como Toronto, Canadá, Portugal, Uruguai e Argentina vão participar. “Hoje em dia, com a internet e o Whatsapp, a gente vai costurando, fazendo workshop através de YouTube para elas, que participam também de reuniões por meating. Durante o ano, continuam fazendo atividades. A gente está sempre em contato e também para a gente trocar experiências, por exemplo, o governo uruguaio estabeleceu o Dia das Mulheres no Samba, que é o dia do nosso encontro. Elas conseguiram através do nosso movimento. Aqui no Brasil a gente não conseguiu”, comparou, lembrando que mesmo durante a pandemia foi possível realizar o projeto virtualmente.
Homenagens
Como sempre, o projeto homenageia uma cantora e foi assim com Beth Carvalho, Elza Soares, Alcione, Teresa Cristina, Leci Brandão e Tia Surica. Este ano, no entanto, serão duas as homenageadas. Clementina de Jesus, in memoriam, e Áurea Martins, que estará presente e vai cantar.
“Quando surgiu essa ideia [de fazer as homenagens no Encontro] queria dar flores em vida para as que estavam aí”, comentou, em alusão ao samba Quando eu me chamar saudade, em que o compositor Nélson Cavaquinho, escreveu os versos Me dê as flores em vida/O carinho, a mão amiga/Para aliviar meus ais, reforçando a importância de receber homenagens enquanto vivo.
Mas para Clementina, que será representada pela neta Vera de Jesus, será a primeira vez que o Encontro faz homenagem a quem já fez a passagem.
Ancestralidade
“Eu estou muito grata, primeiro que o projeto da Dorina é uma coisa linda e ela homenageia várias mulheres. Agora é a vez da vovó e da Áurea Martins, em vida. Eu estou muito feliz e me sinto muito grata. Dorina me convidou agora para representar a vovó e só tenho que dizer obrigada por essa homenagem belíssima. A vovó tem tudo a ver com esse movimento, porque quando ela surgiu teve um protagonismo feminino, trouxe isso com ela em uma época que era dominada pelos homens. Ela chegou, chegando mesmo e desde lá já tinha essa visão de estar desbravando o lugar da mulher no samba. Por ser aquariana, é uma mulher que enxerga lá na frente, dizem isso, né?”, disse Vera à reportagem, animada com a homenagem.
A neta destacou ainda a felicidade pelo papel que Clementina tem no samba e na música, especialmente na época em que a Bossa Nova estava no auge. “Era um movimento muito forte e ela chega com aquela voz dela, singular”, observou.
“Comparo à ligação entre Mãe África e Brasil. Uma voz que veio e deveria ter mostrado mais na época, mas chegou um tempo que para a indústria [fonográfica] não era mais interessante Clementina de Jesus, mas até hoje o nome dela está firmado, está aí respeitado. Ela está sempre sendo homenageada”.
Vera considera importantíssimo ser neta de Clementina de Jesus e poder participar desse evento representando a avó. “É um orgulho. Eu estou muito, muito, muito feliz. Eu nem sabia que ia ter e um dia a Dorina me ligou para dizer que gostaria que eu estivesse presente. Disse para ela 'é para já, é pra ontem'. Eu abracei. Ela tem tudo a ver com esse movimento de Dorina. É uma mulher visionária. Isso já vem lá de trás. Com muita vitalidade. Ela veio com muita força”, descreveu a avó.
Com tanta admiração foi natural ter se tornado cantora por influência de Clementina. Desde pequena, se encantava quando a avó, ainda empregada doméstica e cozinheira contratada para festas, ficava cantando enquanto trabalhava. “Sempre ouvia ela cantando e achava aquilo muito bonito”.
A cantora já disse algumas vezes que o compositor, poeta e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, responsável por levar Clementina para a música, descobriu uma joia rara.
“Herminio fala que não descobriu ela, diz que foi um achado. Ele estava vindo da praia e ouviu uma voz saindo da Taberna da Glória e perguntou que voz diferente era. Depois de um tempo se reencontraram e tudo começou com Rosas de Ouro, no Teatro Jovem em Botafogo. Depois ela começou a ir para as noitadas do Teatro Opinião, em Copacabana. Algumas vezes eu ia lá acompanhando e a via cantando. Aí que me apaixonei de verdade mesmo. Aquilo entrou no meu sangue e não saiu mais. Uma boa influência. Ela me influenciou demais. Ela é minha musa inspiradora”, concluiu.
A presença da avó que a levava a São Paulo para algumas apresentações despertou na neta, apesar da timidez, a vontade de fazer o mesmo. “Uma das vezes que eu fui, ela me chamou para cantar. Eu era muito tímida, mas vi que era o que eu queria fazer”, disse, lamentando que nunca conseguiu gravar um disco com Clementina.
Hoje, além de cantora, Vera é compositora da Portela e integra há três anos o grupo Matriarcas do Samba, na companhia de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola e Selma Candeia, filha do mestre Candeia. Um grupo que representa uma ancestralidade no samba. “Costumo falar isso. Estamos nessa empreitada para continuar levando o legado dos nossos às gerações futuras. Esse projeto nosso é para isso. Para mostrar o trabalho de Clementina, de Cartola e de Candeia”, comentou.
Ainda na estrada de transmitir o legado do samba, Vera integrou o projeto Samba Miudinho, que levou apresentações, no segundo semestre deste ano, a alunos das escolas da rede pública municipal do Rio.
“As Matriarcas levaram a história do samba e de Clementina, Cartola e Candeia”, disse, destacando que o grupo também faz muito trabalho no Museu do Samba, criado para guardar a memória deste tipo de música que encanta muita gente. O Museu fica aos pés do Morro da Mangueira, perto da quadra da escola, na zona norte do Rio, e tem entre os fundadores Nilcemar Nogueira, quando ainda era Centro Cultural Cartola, fundado em 2001.
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Homenagem em vida
Para Áurea Martins, as homenagens são sempre muito especiais para quem recebe e mostram um sinal de que alguma coisa na trajetória chamou atenção de forma positiva.
“Uma homenagem dessa, com mulheres especiais que estão aí nas rodas, tocando, compondo e valorizando o legado deixado desde Tia Ciata, passar por Elza Soares, Clara Nunes, Beth Carvalho, Dona Ivone, Jovelina, e a minha madrinha Elizeth Cardoso, que mostrou com o icônico álbum ‘Elizeth sobe o Morro’, o valor da voz feminina no mundo do samba, estou muito feliz com essa conexão”, comentou à Agência Brasil.
“Tenho certeza que[outras homenageadas] se sentiram como eu me sinto agora, presenteadas por mulheres que nunca vimos pessoalmente, de repente você descobre que sua voz teve eco no Brasil e em outros países. Aí se forma uma grande roda atravessando fronteiras, isso é energia pura pairando no ar. Acredito muito nisso. Ninguém quer duelar com as rodas dos homens, só queremos somar, pra juntos defendermos esse patrimônio que é o samba. Simples assim”, completou.
Áurea revelou que recebeu com surpresa e muita alegria, a notícia da homenagem pela Dorina, que considera uma grande guerreira do mundo do samba.
“Nunca pensei ter tanto carinho das mulheres sambistas, pois como cantora da noite, naveguei por vários estilos, sempre fui uma ‘crooner’, mas atenta a tudo. Aliás, trabalhando pra elite na zona sul, na década de 70, levei o partido-alto de Xangô, Aniceto e outros partideiros, a ponto da Phillips [gravadora de discos] se interessar e registrar essas noites em um LP chamado ‘Uma Noite no 706’, uma boate no Leblon onde o samba prevalecia até o amanhecer, junto a boleros, standards americanos, bossa-nova e samba canção. Era o samba que chamava mais atenção”, recorda.
“Você pode conferir nesse LP aí ao vivo e muito atual e referência pra qualquer cantor ou cantora de samba”, recomenda.