Cordel: Tradição, resistência e cultura em São Gonçalo: conheça a AGLC!
A Academia Gonçalense de Literatura de Cordel (AGLC) promove concursos, além de levar conhecimento sobre o cordel às escolas

A literatura de cordel é uma das manifestações culturais mais tradicionais do Brasil. Reconhecida em 2018 como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, ela vai além das rimas e métricas: é uma fonte de cultura, resistência e expressão popular, abordando temas variados. Em São Gonçalo, o cordelismo cresce diariamente, atraindo novos escritores e jovens interessados na arte. E você, sabia que existe uma Academia Gonçalense de Literatura de Cordel?
Os poetas cearenses e pioneiros do cordel na cidade, Zé Salvador e Ezequiel Alcântara, fundaram a Academia com o objetivo de popularizar esse gênero literário entre os gonçalenses e formar novos cordelistas. Para isso, promovem ações de incentivo à cultura e à escrita do cordel.

“O objetivo nosso aqui em São Gonçalo é fazer com que o cordel cresça, e a gente só faz ele crescer se a gente descobrir cordelistas. A gente não vai para as escolas procurar poetas, a gente vai para as escolas ensinar a ler o cordel, procurar leitores para o cordel. Nesse contexto, a gente encontra pessoas que já tem aptidões para a poesia, então a gente traz para o cordel. E assim, estamos tentando fazer com que tenhamos cordelistas para sentar nas nossas cadeiras da academia”, explicou o poeta e cordelista Zé Salvador, 70.
Além de ensinar sobre o cordel, os projetos visam contribuir com a sociedade gonçalense.
“Esses projetos têm mais o objetivo de semear novos escritores, jovens escritores. É voltados para eles, mas não deixa de ser voltado para a sociedade, uma vez que a gente incentiva a escrita, a leitura, e uma coisa leva à outra”, conta Josileine Gonçalves, 41, fruto da Academia, que também ajuda a preparar o futuro do cordel na cidade de São Gonçalo.

A ideia da criação da Academia surgiu quando Zé Salvador percebeu a ausência de um espaço dedicado à valorização do cordel na cidade. Cordelistas locais precisavam se deslocar até o Rio de Janeiro para participar de saraus e eventos. O projeto ficou engavetado até 2020, quando Zé Salvador e Ezequiel Alcântara decidiram colocá-lo em prática.
“Em 2019, eu conheci Ezequiel. Esse sonho vinha comigo e a gente começou a trabalhar juntos. Quando foi em 2020, eu comentei com ele de criarmos um grupo e depois, 'não, vamos criar uma academia logo'. Foi uma repercussão muito grande e hoje somos respeitados no Nordeste por causa da Academia e do concurso”, contou Zé Salvador.

Uma das principais iniciativas da Academia é um concurso que reúne cordelistas de todo o Brasil. Os dez primeiros colocados têm seus cordéis publicados, e os três primeiros recebem premiações em dinheiro. A seleção é rigorosa para garantir a qualidade dos trabalhos apresentados.
“A repercussão foi boa, apareceram 26 concorrentes, no segundo concurso nós já tivemos cerca de 30, no terceiro tivemos 50 inscritos [...] E isso fez com que a gente levasse o nome de São Gonçalo para lá (Nordeste)”, completou Zé Salvador.
Josileine se encantou pela linguagem do cordel após já praticar trova.
“É bom saber que tem gente nova produzindo, dando uma ‘cara nova’ para o estilo literário. Eu também acabei entrando nessa há pouco tempo, já gostava de poesia, então estou no meio dessa galera que está se arriscando no cordel”, relatou Josileine, que conheceu o cordel ao ir ao primeiro concurso realizado pela Academia. Lá conheceu a vencedora, Alba Helena, que a inspirou a ser cordelista.
Desafios e combate ao preconceito

Apesar dos avanços, os cordelistas ainda enfrentam o desafio de conquistar mais adeptos, em razão do preconceito e do desconhecimento sobre a importância e sofisticação do gênero.
“Já começa pelo preconceito com o dicionário Caldas Aulete com verbete, dizendo que era literatura de pouco valor vendida a preço de banana, só porque era em folheto. O Leandro Gomes de Barros é considerado pai do cordel porque ele que fez esse formato do folheto, porque ninguém podia publicar, imagine um cara no interior fazer vários textos e publicar em livros [...] Então, o cordel era resistência e ainda hoje somos resistência. [...] Talvez por ter essa influência de ser uma literatura do povo, de vir de classes sociais mais baixas, existe esse preconceito de que o cordel não teria qualidade técnica. Mas o corte tem qualidade técnica, métrica, sílabas poéticas, tem figuras de linguagem, tem tudo o que qualquer outra literatura feita por qualquer outro grande poeta do tempo clássico compõem”, explicou Ezequiel, 24.
Apesar das barreiras, os cordelistas mais antigos reconhecem que o cenário vem mudando, inclusive nas universidades.
“Antigamente, a gente entrava nas universidades pelas portas dos fundos e ainda dizendo assim ‘não fala nada não, fica quieto que a gente vai falar com você’, hoje não, hoje somos convidados e passamos por um tapete vermelho. As universidades abriram para a gente, e hoje somos Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro”, acrescentou o cordelista Zé Salvador.
O que é o Cordel?

Quando se fala em cordel, muitas pessoas ainda imaginam os folhetos pendurados em cordas com xilogravuras. No entanto, essa imagem não representa totalmente o cordel.
“Isso vem de erros históricos. O folheto, assim como qualquer poesia, veio de Portugal com os nossos colonizadores, só que o cordel teve um nascimento no Nordeste especificamente, com os cantadores e rodas de conversa, até que virou o folheto que a gente conhece hoje. Mas a confusão acontece porque nas feiras de Portugal tinham o Cordel, que era o nome de uma corda e eram vendidas peças de Gil Vicente, chamados de folhas soltas, com receitas de bolo, horóscopos, poemas, tudo pendurados em cordas”, revelou Ezequiel Alcântara.
“No Nordeste venta bastante com um clima semiárido, do agreste, agora imagina o cordel pendurado no barbante. Em dois tempos, o vento levava. Na verdade, o cordel era vendido em maleta, na lona, no chão das feiras, não pendurado em cordas como se fosse bandeirinha de São João”, explicou o cordelista.
Outro equívoco comum é associar o cordel obrigatoriamente à xilogravura ou ao papel jornal.
“Essa coisa de dizer que só pode ser cordel se for no papel jornal, só pode ser cordel se tiver xilogravura, não tem nada a ver, porque o cordel é o que está escrito, é o conteúdo, é a forma, isso que é cordel. É a história com início, meio e fim, dentro de uma técnica, que é métrica, rima e oração”, completou.
Cordel além do sertão
O cordel não se limita à cultura e à vida no sertão. Ele é um dos pilares da cultura brasileira, tendo servido como meio de informação e entretenimento para populações do interior do país. Cordéis podem ser históricos, românticos, cômicos e muito mais.
“Cordel não fala só de nordestinos. Lampião foi um ciclo, Padre Cícero foi um ciclo, Antônio Conselheiro foi um ciclo, Getúlio Vargas foi um ciclo. Agora quem está escrevendo são os pesquisadores que estão pegando esse material para estudar, e aparece um ou outro que vai e escreve alguma coisa compilando as histórias que foram contadas por esses clássicos”, disse Zé Salvador, que mora em São Gonçalo há 48 anos e escreve cordéis sobre a cidade e outros temas, fugindo do estereótipo do sertanejo com chapéu de couro, gibão e perneira.
A Academia Gonçalense de Literatura de Cordel (AGLC) está de portas abertas para todos que queiram conhecer melhor essa rica expressão literária brasileira, que representa resistência, história, alegria e informação.
*Sob supervisão de Cyntia Fonseca