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Apagão, elitismo, Pagu e uma crônica sobre a Flip 2023

relogio min de leitura | Escrito por Cyntia Fonseca | 28 de novembro de 2023 - 15:32
Flip 2023
Flip 2023 -

Como turista estreante na cidade de Paraty e, consequentemente, em minha primeira cobertura jornalística da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) peço licença (não desculpas!) a mim mesma e aos leitores pelas matérias produzidas com o teor de encantamento. Sim, fiquei encantada, como não poderia ser diferente para uma pessoa que cresceu venerando livros. Era um lugar e um evento que eu vinha planejando conhecer há, pelo menos, uns 9, 10 anos, e por motivos vários nunca dava para ir.

Mas (sempre tem o "mas"!), não gostaria e nem poderia perder a oportunidade de deixar minhas impressões nada isentas sobre o evento. Portanto, esta é uma crônica e não uma reportagem, tá?

Pra contextualizar, aviso que tomarei emprestado expressões de uma autora amiga como "óculos cor-de-rosa", "apartheid" e "esperança". E você pode me perguntar, "mas o que isso tem a ver com a Flip?". A resposta é simples e complexa ao mesmo tempo:

A realidade como ela é.

Da ótica de quem esteve pela segunda vez no evento, ela me contou que pouca coisa mudou no sentido de integração entre as classes e homogeneidade do público. E quando digo classes, são as sociais mesmo.

Mas em se tratando de realidade, começo falando sobre o apagão, que pareceu nos perseguir na Costa Verde. Cheguei com a equipe à cidade na quinta-feira (23) por volta das 19h. O carro estacionou e foi desligado exatamente às 19h07, quando a energia elétrica caiu. Uma singular saudação de boas-vindas que durou até quase a meia-noite. Às escuras, andamos até o centro histórico. Parte do evento continuou, iluminado pelos geradores. A chuva fininha completou a cena.

Logo ao chegar, você percebe que o Centro Histórico de Paraty é notadamente dividido entre os badalados da programação oficial e os segregados da Flip paralela. Num possível meio-termo tem a Flipei, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, uma intervenção política e um ato de resistência que há cinco anos movimenta um público mais alternativo na Praia do Pontal. 

Mas de modo geral, a Flip ainda é, sim, bastante elitista. O público é formado majoritariamente por gente rica e branca. Talvez justamente pelo combo literatura-turismo-padrão-internacional, talvez por não haver um movimento contrário forte o suficiente para que essa realidade mude; talvez por tantos outros motivos. A pergunta que surge é "a quem interessa manter esse modelo de evento?"  Afinal, são 21 anos. 

Eu tinha 10 quando a Flip estreava, a cada ano me encantava ao vê-la acontecer através das reportagens de TV. Era algo distante da minha realidade. Da realidade de crianças, jovens e adultos ávidos por cultura que, habitando o mesmo estado, não tinham condições de estar lá. Vinte anos depois, podemos dizer que alguma coisa mudou pra melhor? Sim, com ressalvas.

A programação está, com certeza, mais diversa e afrocentrada. Percebe-se, aos poucos, bem aos poucos, mais valorização do autor nacional. Aquele que galga, a duras penas, a escada literária em busca do topo, de furar a bolha de seu próprio nicho e, eventualmente, ser premiado. Ou ser premiado e furar a bolha, a ordem não importa.

Um exemplo é o hoje considerado maior escritor brasileiro, Itamar Vieira Jr., autor de 'Torto Arado', que publicou pela primeira vez em 2012. Ele ganhou nada menos que os prêmios Jabuti, Leya e Oceanos. O checklist completo para ser a estrela da Flip. E foi. Indiscutível o merecimento.

Outro exemplo foi Conceição Evaristo. Ovacionada, seguida por filas quilométricas nas ruas de pedras paratienses, a autora de 'Olhos d'água' foi o centro das atenções, mesmo fora da programação oficial. "Queremos você como a homenageada da Flip!", gritou um fã. Em uma das sessões de autógrafo de seu lançamento 'Macabéa, a flor de Mulungu', Conceição Evaristo respondeu a perguntas, posou para fotos, conversou e abraçou leitores e outros autores. Ela, que lançou seu primeiro livro aos 57 anos, tem entre suas frases mais famosas algo que, infelizmente, ainda é notável em eventos como a Flip: "O fato de eu ser escritora e ter um doutorado não me deixa imune ao racismo brasileiro". 

Premiada com Jabuti (2015), Ori e Camélia da Liberdade (2007), Conceição Evaristo, célebre e quase mítica, personifica a minha crítica nesta crônica: ainda há muito o que mudar, melhorar. Evoluir. Digo que a Flip só poderá um dia ser considerada modelo de evento literário igualitário e acessível — se é que os organizadores tenham essa intenção — quando entenderem a lógica básica de que a literatura é uma arte e deve ser valorizada como tal.

Porque artistas que escrevem e 'mudam o mundo' têm despesas, precisam se alimentar, tem custos de hospedagem. Isso quando são sequer convidados. Nenhuma arte sobrevive com um "muito obrigado pela sua presença". Artistas que escrevem e 'mudam o mundo' movimentam a economia. Vendem livros. Seus livros são a arte, o produto final de todo um trabalho e tempo investido, e em torno dessa arte, há todos os subprodutos que vêm na sequência. Mas eu não estou revelando a invenção da roda. São 21 anos de Flip, eles já devem saber, certo?

Checklist das críticas

Voltando à citação da minha amiga autora, tiro meus óculos cor-de-rosa e enxergo o "apartheid", outro ponto que só corrobora a frase já batida "A Flip é elitista". Então, público turista e rico, check. Programação diversa, mas com ressalvas quanto à valorização dos autores nacionais, check. Editoras locais de pequeno e médio porte sem suporte algum? Check também. 

Foi só passar pela Praça Aberta, onde estavam os stands de algumas editoras da região metropolitana, para notar a discrepância. Distantes de onde ocorriam as mesas da programação principal, os autores ficam literalmente apartados do movimento do centro, em chão de terra  — que virou lama  — buscando estratégias para atrair a atenção dos visitantes, os poucos que passavam. Isso numa época em que as redes sociais são ferramentas fundamentais de divulgação, imagine sem elas.

Sobre um tablado de madeira e abrigados por pequenas tendas cedidas pelo município, as editoras fizeram o que puderam. Somado a isso, o fator "chuva constante" afetou qualquer possibilidade de sucesso — e de lucro. Houve relatos, inclusive, de prejuízos. Confesso que não deixei de aplaudir as performances de dançarinos sob a chuva, do forró-pé-de-lama nem de grupos de religiões africanas. Afinal, chuva é benção, com Deus não dá para reclamar. Mas com a organização, dá!

Flipei

Autointitulada a maior festa da literatura revolucionária do Brasil, a Flipei resiste há cinco anos na Flip e reúne públicos diversos. A diversidade da diversidade. Num mesmo espaço, crianças, jovens e idosos dividem a mesma admiração pela artes consideradas alternativas. Famílias inteiras vestidas com as logos do MTST. O ar é diferente na Flipei. O senso de coletivo é efervescente e a programação é mesmo algo à parte. Temas contundentes como educação periférica, crise climática, resistência feminista e antirracismo alternavam com shows e apresentações de DJs.

E foi na Flipei onde senti também maior proximidade dos temas com a artista homenageada, Patrícia Galvão, a Pagu. Confesso que não conhecia muito sua biografia antes de pesquisar sobre a Flip. Mas saí de lá grata pela experiência e curiosa para ler seus livros. Militante ativa do comunismo, Pagu foi a primeira mulher presa por motivos políticos no Brasil, e foi detida 23 vezes. Nada mais representativo sobre mulheres e resistência do que a Flipei.

Casas literárias

Por fim, as casas literárias que, na minha opinião, são outro retrato paradoxal de felicidade versus desventura, respiro versus sufoco. A Casa Gueto, uma das mais movimentadas, tornou-se espelho e símbolo de esperança para editores e autores que começam de baixo. Eduardo Lacerda, da editora Patuá, alçou o título popular de 'herói dos livros' por, nos últimos anos, junto a outros editores, liderar um movimento insano de reunir, organizar e promover a "bibliodiversidade" com  lançamentos, vendas e saraus de mais de 20 editoras independentes do Brasil inteiro. Hoje, a Patuá "tem nome" graças a esse movimento de resistência. O mesmo vem acontecendo com outras como a Mondru e a Arpillera.

Sem glamour ou filas quilométricas, os autores da casa Gueto sentiam-se gratos por terem uma "casa". Por terem apoio e visibilidade. Um começo, uma esperança. E uma sensação de coletivo gostosa de observar. O mesmo senti na Casa Ópera, quando assisti ao sarau do coletivo Escreviventes. O coletivo que reúne escritoras mulheres de todo o país teve o seu momento de encontro e protagonismo nessa casa, que parece estar entre as mais acolhedoras. Foi nela também em que uma editora de Niterói, a Itapuca, esteve abrigada todos os dias de evento.

Passemos ao outro lado. Livrarias como a oficial da Flip e das casas Folha, Publishnews e Livraria das Marés, são aquelas que a gente, reles mortais, entra mais para olhar do que para comprar. Não raro ouço visitantes afirmarem que fazem-nas de catálogo para comprar depois na Amazon.

A realidade como ela é.

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