Mais de 10 anos depois: como funciona a Lei de Cotas na prática
Medida de ingresso ao ensino superior é fruto de anos de lutas e projetos do movimento negro no país; entenda dúvidas e polêmicas

Há pouco mais de uma década, em agosto de 2012, era promulgada a Lei N° 12.711, conhecida como Lei de Cotas. De lá para cá, muito foi debatido a respeito da medida e, à luz do primeiro período de matrículas nas universidades públicas com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em 2023, ela volta a chamar a atenção de jovens e estudantes que pretendem ingressar na faculdade e que ainda não sabem exatamente como as cotas funcionam.
Conforme estabelecido legalmente, a norma garante que metade das vagas ofertadas pelas universidades em cada curso seja destinada a estudantes de escolas públicas. Dentro dessa porcentagem, 50% das vagas vai para pessoas com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo por mês. Em cada uma dessas subdivisões, são separadas vagas para pessoas pretas, pardas, indígenas e com deficiência, sempre de acordo com os levantamentos do último censo demográfico do IBGE.
Sancionada após anos de lutas e projetos do movimento negro no país, a política pública foi recentemente destacada pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, como “uma das maiores reparações que temos no país". Na prática, a lei tem ajudado estudantes que, por conta do contexto da desigualdade social, talvez não conseguissem acessar o ensino superior.
PROCESSO SIMPLIFICADO
É o caso de Maria Luíza Vieira, de 21 anos, recém-formada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Se não fosse pela lei de cotas, eu não teria feito faculdade”, destaca a jovem, que, graças a medida, conseguiu se formar em um curso com uma maioria esmagadora de discentes brancos. “Acredito que no campus da Praia Vermelha, onde estudei, o curso seja uns 90% branco. Eu acho que na minha turma era onde tinha a maior quantidade de alunos negros, que eram, no total, 8 em uma turma de 30 a 35 pessoas”, revela Maria.

Ela relembra que o processo para se matricular através das cotas foi relativamente simples: “Cheguei lá, preenchi um termo afirmando que eu me autoidentificava como negra e foi só isso”. Essa questão, inclusive, da autoidentificação, é que costuma ser motivo de polêmica para os detratores da Lei de Cotas, que geralmente acusam a medida de facilitar oportunismos.
Para Maria, a autoidentificação é importante, mas pode realmente ser usada por pessoas mal intencionadas. “A gente sempre vê notícias de pessoas fraudando cotas, pessoas muito brancas fraudando. Uma coisa a mudar seria ter mais rigor, porque pode acabar tirando a oportunidade de uma pessoa negra que precisa”, acredita a jovem.
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Aluno de Ciências da Computação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Davi Santana, de 24 anos, que também ingressou com cotas raciais, pensa que uma banca de entrevista pode ser útil para evitar situações do tipo. “Tem gente que fala que é preto, pardo ou indígena e é claramente branco. Então acho importante essa entrevista para efetivamente conhecer a pessoa que está ingressando”, opina o estudante.

Prestes a ingressar por meio do Sisu também para o curso de Ciência da Computação, o estudante Ananias Junior, de 17 anos, também passou por questionamentos em relação à própria etnia até decidir pelas cotas.
"Antes de me inscrever, nunca tinha parado para analisar o que é uma pessoa parda. Depois de pesquisar a fundo e analisar meus traços e minha descendência, percebi que sou, sim, pardo. A definição de uma pessoa parda em si, segundo o IBGE, não é subjetiva: é uma pessoa com a mistura de traços característicos de um branco com outra etnia, podendo ser negro, indígena. Porém, a banca não olha apenas para o lado técnico. Ela vê se a pessoa pode ser injustiçada na vida apenas por conta da etnia dela, afinal é por conta disso que a cota foi criada. O que causa a complexidade desse assunto é a mistura de critérios técnicos com históricos", resume.
A advogada e presidente da comissão OAB Mulher na seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio, Flávia Ribeiro, enfatiza que a medida da autoidentificação é uma boa alternativa para alcançar uma parcela da população que enfrenta os reflexos da desigualdade, mesmo não que carregue todos os traços comumente associados à minorias éticas.

“Para a educação, acredito que a autodeclaração é importante, porque as pessoas que não têm o fenótipo negro totalmente, mas que são descendentes de escravizados, também não tiveram as mesmas oportunidades que brancos. Temos pessoas pardas no nosso país que têm a pele mais clara mas que não tiveram a oportunidade de entrar em uma boa escola, porque sua família vem desses ancestrais escravizados. Acho que essas pessoas devem, sim, poder ingressar na universidade pelas cotas", avalia a advogada.
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CONCURSOS PÚBLICOS
Já quando o assunto são concursos públicos e mercado de trabalho, a forma de garantir acesso à populações negras, pardas e indígenas enfrenta outras problemáticas. Flávia explica que o colorismo, uma forma de racismo que discrimina pessoas de uma mesma etnia com base nos tons de pele, pode acabar prejudicando negros de pele mais escura, independente de sua formação.
"Para concurso público, eu acho que as bancas de heteroidentificação são super necessárias. Apesar de a gente não ter um ingresso na educação para todos de forma igual, no mercado de trabalho essas pessoas que têm menos fenótipos negros, têm mais oportunidades", acredita a especialista.

Maria Luíza viveu isso na prática, com as experiências de mercado de trabalho em sua área: "Acho que tem muito mais estagiários negros do que profissionais efetivos negros. Se for pegar minha experiência com estágio e de meus colegas, todos os nossos supervisores sempre eram brancos. Fora que a maioria das pessoas negras que se formam em biblioteconomia vão para um lado mais social da coisa. Eu, pelo menos, nunca vi um bibliotecário negro na biblioteca do Senado, por exemplo. Nessas áreas que são mais formais, acho que é mais difícil. Já em áreas mais sociais, tipo bibliotecas comunitárias ou projetos sociais que envolvam a área, têm muitas pessoas negras".
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Em Computação, Davi também tem encontrado uma profissão que segue bem pouco diversa, e se empolga em poder ajudar a mudar um pouco esse cenário. "O curso é majoritariamente composto por pessoas brancas. Uma amiga de outro curso até brincou que tudo lá é branco, das paredes aos professores. E, com as cotas, conheço muita gente que é muito inteligente e que se não fosse por essa política não estaria na universidade, mostrando o talento", afirma o jovem.

ASPECTOS HISTÓRICOS e 'PRAZO DE VALIDADE'
Um ponto importante para entender as motivações da ação afirmativa, aponta Flávia Ribeiro, é relembrar de aspectos históricos da formação da sociedade brasileira: "É importante saber da História do nosso país para poder respeitar a legislação. Como tivemos uma escravidão legitimada pelo estado e uma abolição ‘fake’, que não trabalhou de forma a colocar os libertos como cidadãos dignos, isso deixou resquícios do passado escravocrata até hoje; a população com menos renda e estudo no Brasil até hoje é a população negra".
A previsão inicial era de que a lei passasse por uma análise na Câmara dos Deputados após completar 10 anos, o que aconteceria no passado. Apesar disso, a revisão acabou sendo adiada e ainda não aconteceu. A ideia é que ela entre na pauta e possa passar por alterações em breve. Apesar disso, na avaliação dos principais especialistas em educação, a medida deve seguir funcionado pelos próximos anos.
"Ela não é uma medida eterna, tem um prazo de validade. Esse prazo foi estendido porque não conseguimos alcançar as metas que a gente gostaria de alcançar na educação. Ela precisa perdurar até que, de fato, a gente tenha as mesmas oportunidades na educação para todos", conclui a advogada.