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Especial Dia das Mães: mãe do campeão brasileiro de jiu-jitsu conta desafios da vida entre maternidade, esporte e luta contra o câncer

Enquanto enfrenta um agressivo problema de saúde, moradora do Miriambi se desdobra para incentivar carreira de atleta mirim

relogio min de leitura | Escrito por Felipe Galeno | 14 de maio de 2023 - 08:00
Raquel e os filhos, Lara e Arthur
Raquel e os filhos, Lara e Arthur -

Muito já foi dito e escrito sobre o significado da maternidade. De textos bíblicos na Antiguidade a novelas de TV no ano passado, muitos já foram os esforços humanos para entender no que consiste, de verdade, o amor de uma mãe. Por conta disso, também muitos são os significados encontrados para esse amor e, no fim das contas, se tornou quase consenso que ser mãe é ser muitas coisas diferentes.

Na história da gonçalense Raquel Torres, de 38 anos, ser mãe ganhou um significado bem específico: o de atleta. Mãe da Lara, de 17 anos, e do Arthur, de 9, ela acompanha de perto a rotina esportiva através do apoio dado ao filho mais novo, que é o atual campeão brasileiro de jiu-jitsu na categoria infantil. Paralelamente, ela pratica 'dois esportes' ainda mais desafiadores: criar os dois filhos e enfrentar um agressivo quadro de câncer triplo negativo.

Raquel enfrenta, pela segunda vez, tratamento contra câncer
Raquel enfrenta, pela segunda vez, tratamento contra câncer |  Foto: Layla Mussi
 

“Eu luto nos tratamentos, porque sou uma pessoa que não desisto. Deus fala: ‘vem’ e eu: ‘não vou’. Eu vou até o fim, se tenho metas eu alcanço. Foi assim que criei a Lara e foi assim com o Arthur. Quando ele começou com esse negócio de jiu-jitsu, eu falei para ele que ele iria trazer o brasileiro. E a medalha está aí, porque a gente focou e a gente trabalha muito bem junto”, define Raquel.

Quem a vê incentivando o pequeno em treinos ou correndo atrás de patrocínio para a carreira dele, talvez não dimensione de primeira o esforço que ela precisa empenhar em sua competição contra o câncer, que começou há mais de 4 anos. A notícia do tumor na mama, em 2018, só não foi mais surpreendente para ela e o esposo, Thiago Moraes, por causa de alguns sinais que ela já vinha experimentando há alguns meses. 

"Comecei a sentir uma dor", ela explica. O incômodo e latência foram o bastante para fazê-la procurar ajuda médica. Com os doutores, porém, ouviu que o problema podia ser 'coisa de sua cabeça', que não tinha predisposição ou históricos que pudessem apontar para alguma complicação séria. Mesmo assim, havia alguma coisa premonitória naquela dor que a fez insistir: "Eu sempre tive uma coisa de acreditar muito na minha intuição, acho que era Deus falando comigo".

Foi apenas seis meses mais tarde, em outubro de 2018, que chegou o diagnóstico. Um câncer de mama do subtipo triplo negativo, um dos mais violentos e de difícil tratamento. "Se eles tivessem acreditado em mim, talvez a minha história hoje fosse diferente", ela afirma, com um tom de mágoa mais lamentoso. Foi aí que começou seu esforço olímpico contra a doença. 

Como o tipo de câncer que a acometeu não tem uma terapia alvo estabelecida, ela precisou correr atrás de um tratamento que pudesse ser eficiente para seu quadro. Encontrou, na época, em Fortaleza, e partiu "com a roupa do corpo" em direção ao Nordeste. Levou o filho mais novo, mas acabou tendo que deixar a filha por mais alguns meses em São Gonçalo, junto do pai, para que terminasse o ano letivo. Foi no aeroporto que vivenciou a primeira das imagens mais traumáticas de sua trajetória. 

"Minha vida sempre teve esses momentos de olhar para trás", ela conta. A partida para Fortaleza foi um desses. "Eu olhei para trás no aeroporto e vi a Lara e meu esposo, sem saber se iria vê-los novamente". A imagem ficou gravada, não só pela dor da doença e da despedida do marido, mas sobretudo pela ideia de deixar a filha, uma parte de si, para trás.

O sentimento está muito ligado ao senso de vocação que a maternidade tem para ela. Apaixonada por futebol na juventude, ela sempre encarou a missão de cuidar dos filhos com a mesma garra, zelo e entusiasmo de um jogador diante do gramado. "Quando fiquei grávida, eu e meu esposo, nós decidimos que, se eu queria ser mãe, eu ia ser mãe em tempo integral e ia me dedicar 100% a eles. Decidi que ia dedicar minha vida aos dois e a transformar eles no que quisessem ser", declara Raquel, tenaz.

Por isso, olhar para trás e ver um dos filhos é tão doloroso; é como ser forçada a abandonar a sua missão de vida por um tempo. Essa dor se repetiu em uma ocasião específica ainda em Fortaleza, quando passou mal e precisou ser levada às pressas ao hospital. "Eu lembro de entrar no hospital sentindo muita dor, olhar para trás e ver eles dois, meus filhos com as mãozinhas dadas uma ao outro", ela rememora com lágrimas nos olhos. 

No entanto, por mais que a vida a tenha forçado a olhar para trás por diversas vezes, sua história é marcada pela obstinação com que seguiu olhando para frente. Foi assim com o tratamento na época. "Eu queria tanto me auto superar que eu terminava de fazer as terapias vermelhas e ia correr. Eu nunca aceitei ficar de cama, vomitar. Nunca aceitei me entregar para nada. Eu sou muito competitiva, então marquei uma competição: era eu contra a doença", narra. 

O resultado foi mais que positivo. Raquel teve uma melhora considerável e foi liberada para voltar ao Rio. Seguiu tratando, saiu bem de todas as cirurgias que fez, realizou a reconstrução mamária. A meta de seu médico era "passar 3 anos bem, sem tomar nada". Ela passou e chegou aos 4 anos pós-diagnóstico saudável e forte. "Eu estava vivendo o melhor momento da minha vida", pontua. 

Foi nesse momento, em meados do ano passado, que mais um sinal apareceu e a levou aos exames. Dessa vez, o sinal veio através de um sonho que tirou o Arthur da cama. "Eu tive um sonho que estava na praia, com minha mãe, meu pai e minha irmã. As ondas estavam batendo muito forte. Aí veio a água e puxou a minha mãe. Meu pai tentou entrar, mas não conseguiu pegar ela. Eu comecei a chorar, olhei para o alto e vi minha mãe lá no céu", relutante, narra o pequeno, que não gosta de lembrar do pesadelo.

Aos prantos, ele acordou a mãe de madrugada contando que tinha visto ela no céu. Raquel entendeu como um recado. "No dia seguinte, eu fui ao médico e falei que queria fazer os exames. Disseram que não tinha necessidade, mas insisti". Nada demais, a princípio, nenhum sinal preocupante, até que, eventualmente, veio a infeliz notícia: o câncer retornou. Desta vez, em metástase, em um quadro mais violento que o que superou no passado.

Como a atleta que é, Raquel se agarra aos bons fatos; se não fosse o sonho do filho mais novo, talvez ela já tivesse descoberto o retorno da doença em um estágio mais avançado. Ao mesmo tempo, como mãe, ela não nega que as preocupações rondam a mente. "O medo de uma mãe não é morrer, o medo da mãe é deixar um filho sem saber como ele vai seguir", afirma, com mais algumas lágrimas rondando as pálpebras.

Ainda assim, sempre válido lembrar, Raquel é atleta-mãe, e, portanto, os dois sentimentos se misturam e se convertem, por fim, em determinação para seguir, com pressa de viver: "É por ele e por ela que eu vou continuar aqui. Se Deus falar: ‘agora vem, te deixei mais 4’, eu falo para ele que ainda não vou, enquanto eu puder brigar, eu vou brigar". 

Como estímulo extra, ela tem tido também a prática esportiva do seu filho, que acaba ocupando boa parte de seu tempo e ajudando-a a encontrar forças para enfrentar seus próprios desafios no tatame da vida. O pequeno Arthur começou no esporte despretensiosamente há pouco mais de um ano e descobriu que não só tem o gosto como o talento para a coisa. 

"Eu não sabia que eu tinha um dom para jiu-jitsu", ele conta, já com carisma de campeão. Descobriu o dom no caminho e com isso começou a colecionar medalhas. Com o apoio de toda a família, mas, em especial, de sua mãe, se empenha em torneios por aí e, recentemente, participou do Campeonato Brasileiro na categoria infantil. Como a predileção por desafios parece correr no sangue da família, ele acabou caindo em uma das 'chaves' mais difíceis.

Arthur conta com a ajuda da mãe para nunca desistir
Arthur conta com a ajuda da mãe para nunca desistir |  Foto: Layla Mussi
 

Arthur ficou em um grupo cheio de atletas mirins, alguns adversários estrangeiros e boa parte com maiores trajetórias e qualificações. Nas quartas de final, ele sentiu na pele essa intensidade em uma luta contra um competidor vindo do Estados Unidos. Na reta final da disputa, ele estava perdendo, dominado pelo outro lutador. "Faltava 1 minuto para a luta acabar e corria muito o risco de o juiz acabar com a partida", relembra a irmã, Lara.

Morador de SG é destaque nacional em sua categoria
Morador de SG é destaque nacional em sua categoria |  Foto: Layla Mussi
 

A cena comoveu a mãe, que também tem um tanto de treinadora. Ao ver o menino olhando para trás, para ela, assustado com a possibilidade da derrota como ela esteve nas ocasiões em que precisou 'olhar para trás', Raquel decidiu ir até a grade para estimulá-lo a seguir lutando. "Subi na grade, arranquei a peruca, apontei para ele e gritei: ‘Você não vai desistir. Levanta, você não vai desistir. A gente nunca desiste, a gente não nasceu para perder’", se emociona. 

"Quando eu olhei, não sei de onde eu tirei forças", relembra Arthur. "Puxei meu braço com toda a força, entrei logo e, faltando 40 segundos, eu dei uma queda nele e ganhei a luta". A vitória definitiva e a medalha de ouro que ele tão orgulhosamente exibe só viriam, naturalmente, duas lutas depois, na final. Mas esse momento nas quartas, essa "volta por cima" na reta final, esse determinado "olhar para frente" de atleta, é um símbolo perfeito das lições que a família Torres tem aprendido nos últimos anos. 

Enquanto seguem em sua corrida atlética pela vida, a família escreve uma história cuja moral, eles esperam, enfatize a empatia
Enquanto seguem em sua corrida atlética pela vida, a família escreve uma história cuja moral, eles esperam, enfatize a empatia |  Foto: Layla Mussi
 

Mesmo a filha mais velha, um pouco mais fechada que o menor, também carrega essa diligência atlética na vida - seja na forma como se dedica aos estudos e se prepara para o vestibular, seja no papel que aprendeu a assumir dentro de casa desde o diagnóstico da mãe. "Você não sabe que você é forte até tentar. A gente não tem outra opção, a gente é obrigado a ser forte. Eu não tinha como não aprender a lidar com a situação, então só vivi. Só sigo", detalha Lara, que, nas palavras da própria mãe, acabou também praticando o esporte da maternidade na forma como ajudou a cuidar do irmão pequeno.

Enquanto seguem em sua corrida atlética pela vida, a família escreve uma história cuja moral, eles esperam, enfatize a empatia. "Independente do que Deus quiser para mim, eu quero que minha história não seja em vão. O que quero passar para meus filhos é que a gente tem que olhar para o outro como ser humano, olhar para a dor do outro com um olhar que não é banalizado", conclui Raquel. No fim das contas, ser mãe é também ensinar a olhar para o mundo com humanidade. E com a cabeça erguida, como todo bom atleta. 

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