Dia do Refugiado: angolana encontra lar em Maricá e relembra trajetória
Educadora, que vive no Brasil há mais de 40 anos, registrou sua trajetória em livro
No meio das festividades típicas e feriados religiosos do mês de junho, o Dia Internacional do Refugiado costuma estar entre as efemérides menos lembradas. No entanto, para quem viveu e vive na pele a realidade da busca por um novo lar em terras estrangeiras, o 20 de junho é uma celebração indispensável, uma data para se lembrar dos percalços na luta por condições de vida durante a fuga de um contexto de crise.
O número de pessoas nessa situação no Brasil tem crescido ao longo dos últimos anos, segundo dados da Agência da ONU responsável pelo assunto, a ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). De acordo com dados da organização, o país foi da recepção de 3 refugiados por ano em 1985 para 5.800 em 2022. Recentemente, o país tem sido um dos mais receptivos a cidadãos de países vizinhos em busca de asilo e refúgio, como os venezuelanos, principal nacionalidade a chegar no país sob as condições atualmente.
Muito antes deles, outras nações em crise já viram muitos de seus cidadãos migrarem ou se refugiarem em terras brasileiras. Há cerca de cinco décadas, nos anos 70, eram os angolanos um dos principais grupos a procurar abrigo por aqui, por conta do conflito civil que marcou meados daquela década. Entre muitos dos que vieram esteve Luisete Furtado, educadora nascida em Angola que encontrou seu novo lar especificamente por aqui, no Rio de Janeiro. Hoje uma aposentada maricaense de 79 anos, a professora e autora conta que a transição para a nova casa não foi exatamente fácil; na verdade, sequer foi planejada.
Luisete - ou Lisa, como viria a ser apelidada por seus alunos no Brasil - cresceu no interior da Angola durante o período colonial. Apaixonada por história e cultura, ela dedicou a juventude ao estudo de História e Filosofia no território dos colonizadores, pela Universidade de Lisboa, em Portugal. Formada nos anos 60, ela regressou ao país de origem para lecionar as disciplinas para estudantes do 2° grau na capital angolana, Luanda.
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Por lá, levou uma vida tranquila por muitos anos. Mesmo com o clima de tensão que já se avizinhava ao longo dos anos e com os excessos do regime colonial, Luisete conseguiu encontrar certa tranquilidade com a vida na capital. Durante os 9 anos que trabalhou na escola, teve sucesso no ensino e foi promovida a professora metodológica da unidade. Fazia o que gostava: estudar, pesquisar e lecionar para professores novatos na unidade. Ao mesmo tempo, cuidava da irmã adolescente, Ana Maria Furtado, e preparava a rotina para o casamento com seu noivo.
Tudo mudou no ano da independência. “Quando chegou em julho de 1975, executaram a pessoa com quem eu iria me casar”, ela relembra, não sem uma carga de emoção na voz. O baque foi um sinal de tempos sombrios que sobreviriam nos anos seguintes ao país; tempos estes que apareceram num contexto que deveria ser positivo, o da independência. Luisete conta que, nos meses anteriores ao ocorrido, se preparou com esperança para lecionar em um país livre.
“Até então, a aula de História que dava tinha muito da Europa. Se Angola caminhava para a independência, precisava ter sua própria identidade, sua própria História. De 74 a 75, eu realmente me dediquei à pesquisa da história de Angola”, ela explica. Essa nova História, porém, veio a ser marcada pelo conflito entre dois grupos de guerrilha anticolonial, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).
No caso da capital onde vivia, foram as tropas do MPLA que dominaram. A tensão fez, ela explica, com que muitos educadores ficassem ‘marcados’ e com que escolas fossem ocupadas por guerrilhas. O liceu onde Luisete trabalhava foi um deles. Por mais que ela não fosse contrária à independência do país, sua não adesão ao grupo de guerrilha que dominava a região a fez ser erroneamente apontada como contrária ao movimento. “Meu nome estava entre os nomes escritos nas paredes da escola como uma pessoa retrógrada, que era contra a independência”, ela lembra.
Depois da execução de meu noivo, eu sentia que a próxima na lista poderia ser eu. Nessa época, cuidava da minha única irmã, que tinha 16 para 17 anos. Fiquei com muito medo do que poderia acontecer não só a mim mas também a ela, na medida em que ela era uma menina linda, jovem”, conta. Como muitos dos angolanos da região, alarmada pela situação, decidiu comprar uma passagem para deixar o país, uma medida de emergência aparentemente temporária.
Sem contato com os familiares, que viviam no interior da Angola, Luisete partiu com a irmã Ana Maria e com um de seus jovens alunos, Hélder, em direção ao Brasil, em 1975. “A maioria dos angolanos vinha para cá, porque falavam português e porque uma parceria entre Brasil e Portugal validava nossa documentação aqui. O meu diploma de licenciatura poderia ser validado aqui”, justifica a autora, sobre o destino. Comprou passagens de ida e volta e decidiu viajar, determinada a passar apenas um tempo fora até que as coisas se acertassem na terra natal.
Percalços na hora da partida impediram a viagem de acontecer por cerca de duas vezes, até que o grupo conseguiu finalmente partir. Saíram da angola não só os três, na verdade, já que Luiste, como brinca, viajou “grávida” da cachorrinha Boneca. “Ela era bem pequenininha, então botei ela numa sacola e escondi numa ‘bata’, numa roupa grande que vesti. Saí grávida da cachorra”, confessa.
A cadela refugiada foi a catalisadora do suspense em uma história já tensa, Luisete relembra: “Antes de o avião aterrissar, ela acordou. Na hora em que abri a minha vestimenta rapidamente para que ela pudesse respirar um pouco melhor, a comissária de bordo exatamente passou e viu a cachorra na minha barriga. Eu pensei: ‘É agora que vou ser presa por contrabando de animais’”.
Foi esta a deixa também para um momento de misericórdia na narrativa da refugiada, já que a aeromoça se compadeceu da situação: “Ela trouxe até uma cumbuca com água para a cachorra. Ela disse: ‘Você não é a primeira e não será a última trazer seu próprio animal contigo’”. O alívio foi combinado com a alegria de encontrar no Brasil não apenas brasileiros receptivos como também muitos compatriotas.
“Um grupo de angolanos ia todas as semanas para o aeroporto receber as pessoas que vinham de lá”, ela explica. Com eles, recebeu as informações que precisava para encontrar seu destino na Zona Oeste do Rio, que não seria fácil com o pouco que trouxeram. “Saí da Angola junto de dois seres humanos e uma cachorra com 189 dólares para sobreviver, e cada um com uma maletinha daquilo que era mais importante”, ela lembra.
Seu automóvel, que mandou trazer em navio para cá, foi roubado no caminho, o que só dificultou esses primeiros anos, que define como “muito difíceis”.. Para o aluno que veio com ela, foram ainda mais, como ela lamenta. “Eu e minha irmã éramos brancas, mas meu aluno e amigo Hélder era, como chamávamos em Angola, mulato, e isso o atrapalhou a encontrar emprego no Brasil. Era um menino muito inteligente, apaixonado pela leitura, mas saía para procurar emprego e só recebia ‘não’”, ela relembra.
A questão o motivou a usar a passagem de volta para viajar à Portugal, onde tinha familiares. Acabou formando uma família por lá e se estabelecendo no país europeu. Alguns anos depois, sua irmã, por conta de uma desavença familiar, também foi para lá. Por fim, Luisete acabou sozinha no Brasil, agora sem previsão de retornar, já que as condições de seu país ainda não haviam melhorado. A Guerra Civil angolana viria a dominar o território na África Central até 2002.
A angústia do novo país (e dos novos empregos, já que, por muitos anos, acabou exercendo outras funções que não a de educadora) marcou boa parte dessa trajetória. Depois de um tempo, porém, ela afirma, as coisas se acertaram, e a nova terra acabou se tornando mais seu lar do que esperava. Em 1990, ela foi morar em Maricá e por lá lecionou tanto em escolas da rede municipal como da rede privada. Na cidade da região metropolitana, ela passou de vez a ver o refúgio como casa.
“Gosto imensamente dessa cidade. Sou apaixonada pelo lugar e pelo povo que me acolheu muito bem”, celebra. Fez amigos e muitos alunos - 3 mil, ela estima. Construiu não só uma carreira bem-sucedida como uma vida de tranquilidade, da qual hoje se orgulha. “Sou uma pessoa idosa muito feliz atualmente”, celebra dona Lisa, hoje mais maricaense que nunca.
Sua nação se tornou de vez o Brasil, já que para Angola ela nunca mais retornou. “Nunca tive coragem de voltar à minha terra. Viajei por alguns lugares, mas nunca consegui voltar lá”, ela conta, não sem um tom de lamento por sua nação. Em compensação, na nova nação encontrou também novos amores, alguns bem recentes, como é o caso de sua emergente carreira como escritora.
“Quando veio a pandemia, eu quase fiquei louca presa dentro de casa e, então resolvi, ter um novo objetivo na minha vida. Peguei todo o material que tinha de pesquisa e virei escritora”, comemora a autora, que estreou na área em 2021 com "Maricá. da pré-história aos tempos do petróleo e gás". Seu primeiro tema de estudo como autora foi justamente a história de sua terra de refúgio.
O resultado a agradou tanto que a motivou a olhar, agora como autora, para sua própria experiência como refugiada. "Depois de ter parido a história de Maricá, resolvi transformar a minha própria em uma narrativa", ela conta. No ano passado, publicou “As Sete Vidas de Lisa”, pela Afeto Editora, um romance com tom biográfico em que examina momentos marcantes inspirados por sua trajetória. Em breve, planeja publicar um novo volume com pesquisas históricas e uma coletânea de poesias, intitulada, a princípio, "Restos de Mim".
"Minha história é uma história com um começo muito difícil, mas hoje me sinto uma pessoa feliz e que pôde chegar a velhice bem", conclui a autora.