Aqui tem história: Único presidente negro e 'dono das ruas', quem foi Dr. Nilo Peçanha?
Em São Gonçalo, Niterói ou nas demais regiões brasileiras, o nome foi escolhido repetidamente para nomear as ruas
No dia a dia das cidades, o trânsito entre ruas e avenidas é auxiliada por meio das placas de rua. Por meio delas, o fluxo urbano se direciona exatamente para o endereço que se deseja acessar. No entanto, alguns lugares anunciam uma questão peculiar: placas de ruas com nomes repetidos em diferentes bairros ou municípios.
A duplicidade de nomes revela um problema de identidade e confusão na malha urbana. Afinal, quem nunca se perguntou qual era o endereço correto ao se deparar com duas ruas de nomes iguais nos aplicativos de carona? Ou teve um problema de entrega de encomenda por morar em uma localidade com o nome repetido?
Entre os muitos nomes repetidos nas placas de endereço fincadas na esquina das ruas, um nome é sinalizado repetidas vezes. Dono de diversas ruas, no site Busca CEP, ‘Dr. Nilo Peçanha’ aparece em cerca de 766 resultados de busca e dá nome a endereços de ruas nas cinco regiões brasileiras.
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Conforme a professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense Luciana Nemer, a nomeação das ruas é uma ''espécie de homenagem'' que cabem aos vereadores:
’’Nomear uma rua é uma espécie de homenagem póstuma, onde pessoas falecidas e que tiveram alguma importância histórica ou atuação importante na comunidade são reconhecidas pela municipalidade. Também é de domínio público a informação que o nome atribuído aos espaços públicos como ruas, avenidas, praças, passeios públicos é uma das atribuições dos vereadores. Desta forma, cabe as prefeituras o controle sobre a nomenclatura das ruas e, portanto, a tarefa de evitar a repetição de nomes que impacta o deslocamento e a localização dentro da cidade.''
Segundo a urbanista, os nomes pensados para ruas podem seguir quatro classificações: ''Com certeza, é clássica e usual a repetição de nomes importantes da política, personagens da história, fatos históricos: Independência, República, e pessoas relacionados a grandes feitos na área da saúde. Também à cultura material: elementos palpáveis e concretos, por exemplo, obras de arte e igrejas como Pietà e do Carmo e imaterial: os saberes e os modos de fazer, como dos Pescadores e das Paneleiras, podem gerar nomes de ruas, avenidas e praças.'', explicou.
Em São Gonçalo, a rua Dr. Nilo Peçanha liga os bairros Centro e Nova Cidade. A longa extensão da rua provoca algumas confusões, conforme conta o aposentado Carlos Henrique Fonseca, de 68 anos: ‘’Eu estava vindo para uma consulta e pedi para meu neto chamar um carro de aplicativo para mim. Coloquei o endereço que estava no cartão, mas chegou aqui e o motorista não estava achando o consultório, porque estava constando que era lá no Centro. Mas não era, era aqui, só que lá também se chama Nilo Peçanha.’’, contou.
Já em Niterói, a rua de mesmo nome se situa no bairro Ingá, mesmo lugar onde está localizado o extinto Palácio do Ingá, local onde a figura explorada neste capítulo da série "Aqui Tem História", elegeu-se como deputado pelo Estado do Rio de Janeiro, em 1903.
Na rua Dr. Nilo Peçanha, em Niterói, nas proximidades do antigo palácio, onde hoje se concentra o Museu do Ingá, um grupo de taxistas cumpre o expediente, encostados nas portas entreabertas de seus carros enfileirados. "Hoje teve uma confusão aqui, porque os passageiros que eu estava transportando queriam ir para Dr. Nilo Peçanha em São Gonçalo. Lá é avenida e aqui (Niterói) é rua. Eles queriam ir para lá e acabaram parando aqui.’’, relatou o taxista Wellington, de 40 anos.
A repetição de nomes em um mesmo bairro impacta a navegação dos transeuntes. ''Se dentro de um mesmo município é contra a lei a repetição de nomes; o fato ocorrer dentro de um bairro é ainda mais desastroso. Bairro é a parte em que se divide uma cidade ou vila, para facilitar a orientação das pessoas e possibilitar administração pública mais eficaz. Logo dentro de um bairro, com diversas semelhanças edilícias e desenho urbano equivalente, pode-se compreender mais de um loteamento e, assim, ocorrer a duplicidade temporária de nomes de ruas. A repetição gera problemas com entregas, transportes e localização.'', concluiu Luciana Nemer.
Entre o vai e vem confuso pelas ruas perdidas em suas sinalizações, uma pergunta não se cala: Quem foi o Dr. Nilo Peçanha? Segundo o historiador e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rui Aniceto, Nilo Peçanha foi um republicano histórico.
Quem foi Nilo Peçanha: Raízes campistas
Nascido em Campos dos Goytacazes, no interior do Rio de Janeiro, em 1867, o campista era filho do padeiro Sebastião de Sousa Peçanha, o ‘Sebastião da padaria’ e de Joaquina Anália de Sá Freire, descendente de uma família de agricultores que detinha certa influência econômica e política.
Nilo tinha quatro irmãos e duas irmãs. A família viveu num sítio situado no Morro do Coco, em condições bastante precárias. Segundo relatos históricos, Nilo Peçanha chegou a afirmar que teria sido criado com “pão dormido e paçoca”. No início da trajetória escolar, Nilo mudou-se para a cidade em idade escolar e fez os estudos preliminares no Colégio Pedro II. Depois, estudou na Faculdade de Direito de São Paulo e na Faculdade do Recife, onde se formou.
Republicano e abolicionista
Foi durante as atividades escolares que o campista se engajou e iniciou seus primeiros movimentos políticos, conforme recorda o professor Rui Aniceto:
"Na década de 80, na escola, ele começa a se envolver com o movimento republicano. Ele tem o apadrinhamento do Barão de Miracema, que também era um liberal, não era republicano, mas era um liberal. Então, ele entra na política dessa forma. Ele vai ser um personagem que vai se movimentar intensamente em todos esses movimentos da primeira república. No republicanismo, nos primeiros governos, de Deodoro, Floriano, Prudente de Morais".’
Observando o declínio da monarquia e o início do modelo republicano - forma de governo em que o poder é exercido pelo povo, através de seus representantes eleitos, em oposição a uma monarquia ou ditadura-, Nilo Peçanha, recebeu a primeira candidatura em meio ao nascimento da democracia brasileira.
Com a transição do modelo governamental, fez-se necessária a criação de uma Assembleia Nacional Constituinte, em que Nilo foi eleito deputado pelo Partido Republicano, em 1890. Nos trabalhos na Constituinte, Nilo assinou a primeira Constituição Brasileira, quando tinha apenas 23 anos. No fim do mandato na Constituinte, realizou dois mandatos como deputado estadual pelo Rio de Janeiro, entre 1891 e 1903.
Já em 1903, foi eleito a presidente do Estado do Rio de Janeiro. A nomeação, na época, equivale ao que temos hoje no título de governador de estado. Em relação a sua atuação, sua administração foi desempenhada com excelência.
’Ele foi considerado um personagem importante na reestruturação do Rio de Janeiro. Na superação da crise pós-abolição da escravatura e implementação do governo republicano. Além de sanear as contas públicas do estado, ele teve iniciativas de diversificação agrícola. Então ele é considerado um desses propulsores, da renovação no campo econômico do estado do Rio.’’
Um presidente negro e uma cor embranquecida
Além de todos esses, um detalhe rouba a cena na história do republicano. Nilo Peçanha era negro. No entanto, assim como outros personagens desta parte da história, sua cor de pele foi atenuada como parte da política de embranquecimento do estado brasileiro, uma prática comum que vigorou no final do século XIX ao início dos anos 20. A política tinha o objetivo de estimular a imigração e a miscigenação para eliminar os negros do país.
"Ainda na escola, ele criou um jornalzinho manuscrito em que defendia as ideias republicanas e a abolição da escravidão. Ele era muito mais um propagandista da abolição, do que realizador de ações diretas, assim como, parte tanto de compras de alforrias, de clubes de alforria. Era mais nessa linha de atuação, na defesa do fim da escravização, mas isso não tinha um vínculo com o autorreconhecimento dele. Naquele momento, ele não se reconhecia como descendente de escravizados", explicou Rui.
Como o racismo era uma prática comum (mesmo com a abolição da escravização), Nilo negava suas origens.
Compreendendo a ofensa, segundo a autora Grada Kilomba, no livro Memórias da Plantação, ‘mestiço’ e ‘mulato’, são termos de nomenclatura animal altamente romantizados durante o período de colonização. Mulato é a "palavra originalmente usada para definir o cruzamento entre o cavalo e uma mula, que dá origem a um terceiro animal considerado impuro e inferior".
Além de moleque presepeiro, Nilo também era chamado de mestiço do Morro do Coco, lugar onde viveu. Seu casamento, também foi tido na época como um escândalo social, visto que ele, preto e pobre, casou-se com Ana de Castro Belisário Soares de Souza, descendente de famílias aristocráticas e ricas de Campos dos Goytacazes, neta do Visconde de Santa Rita e bisneta do Barão de Muriaé e do primeiro Barão de Santa Rita.
Apesar disso, para Nilo já estava escrito um futuro promissor. Em 1906, cerca de um ano e meio antes de terminar seu mandato como chefe do executivo estadual fluminense, foi eleito vice-presidente do Brasil na chapa de Afonso Pena. Já em1909, assumiu a presidência do país, após a morte do político mineiro. Nilo Peçanha permaneceu como presidente até o fim do mandato, período que durou 17 meses.
Seu lema era ''Paz e amor'', como resultado de sua atuação, Nilo Peçanha criou o Ministério da Agricultura, Comércio e Indústria, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), anterior à Funai e o ensino técnico no Brasil, com as Escolas de Aprendizes Artífices, precursoras dos atuais Cefets – Centro Federal de Educação Tecnológica.
Homenagens
O nome do município fluminense Nilópolis, fundado em 1947, na região metropolitana do Rio de Janeiro, recebeu o nome em homenagem ao presidente. Assim como o município de Nilo Peçanha, na Bahia, que existe desde 1930.
Além destes, atualmente, seu nome se tornou comum nas placas de diversas ruas em partes de todo o Brasil, como retrato de sua influência e importância histórica e ancestral.
*Sob supervisão de Cyntia Fonseca