'Unidas Pela Vida': elas venceram o câncer de mama e hoje cuidam de quem busca tratamento em SG
Grupo de apoio acolhe e resgata a autoestima de mulheres vítimas da doença
"Nem toda princesa usa coroa, algumas usam lenços". Com essa frase, de forma despretensiosa, a advogada, contadora e estudante de psicanálise Patrícia Silva doou o primeiro lenço e marcou ali o início do Unidas Pela Vida, um grupo de apoio às mulheres que lutam contra o câncer em São Gonçalo. Rapidamente um lenço — amarrado num cabideiro junto à frase acima — se transformou em mais de 3 mil unidades e o grupo foi ganhando força.
Atualmente, o Unidas Pela Vida doa mais que lenços: perucas, cremes, próteses mamárias, ensaio fotográfico, viagens, apoio e amor, muito amor. O cuidado e o apoio se mostraram tão importantes que o grupo passou também a atuar na vida das mulheres que já venceram o câncer, auxiliando até na recolocação dessas profissionais no mercado de trabalho.
Estudos apontam que cerca de 80% das mulheres sofrem algum tipo de abandono quando descobrem o câncer. Além de conviver com a incerteza da vida, elas precisam aprender a viver com o abandono do companheiro, dos amigos, familiares, com a falta de emprego, e com todas as mudanças que a doença apresenta ao corpo. E tudo isso sem poder reclamar, claro! Afinal, venceram o câncer.
"As mulheres vencem o câncer, mas aí é só a primeira parte da luta. Elas perdem o marido, o emprego e depois, mesmo curadas, não sabem como seguir. E a gente faz o possível para que esse trajeto seja mais leve. Criamos pontes para que voltem a ser vistas no mercado de trabalho. Voltem a perceber quem são ou até mesmo a se redescobrir. A gente oferece o apoio que muitas vezes falta”, contou Patrícia Silva, que atua também como diretora do Espaço Rosa, unidade pública municipal, administrado pela Prefeitura e destinado ao tratamento da saúde da mulher.
As mulheres vencem o câncer, mas aí é só a primeira parte da luta. Elas perdem o marido, o emprego e depois, mesmo curadas, não sabem como seguir Patrícia Silva Diretora do Espaço Rosa
“Em 2017 eu já estava no Espaço Rosa e percebi que tinha que fazer mais. Um dia, eu estava deitada quando veio a ideia de criar um grupo. Divulguei e amarrei o primeiro lenço para doação. Tudo foi crescendo e hoje somos centenas de mulheres — e agora homens, no Unidos Pela Vida. A gente doa tudo o que elas precisam para a trajetória ser mais leve. Mas o que a gente mais faz é doar amor, companheirismo e esperança. O diagnóstico não é o fim, não é uma sentença de morte e quando elas trocam experiências, convivem com quem venceu”, explicou.
O diagnóstico não é o fim, não é uma sentença de morte Patrícia Silva
Para o cirurgião oncologista Edmar Lopes, que atua como diretor do Centro Oncológico de São Gonçalo e foi o primeiro empresário a se unir ao Unidas Pela Vida, o que o grupo faz pelas pacientes é fundamental. “O câncer de mama é o câncer que mais acomete mulheres no Brasil. Quando diagnosticado precocemente, a chance de cura do câncer de mama chega a mais de 90%. Mas o tratamento é longo e o apoio que as meninas do grupo oferecem faz muita diferença na vida dessas pacientes”, explicou.
“Mas a gente fazia o acompanhamento, mostrava que a vida não tinha acabado e mesmo assim faltava. Pois quando as mulheres vencem as etapas e podem voltar a ter uma vida, elas, muitas vezes, não recebem a chance de seguir. Não conseguem empregos, por exemplo. E nós iniciamos, então, uma parceria com empresas para que elas sejam contratadas. São profissionais muito qualificadas, que não ganham a vaga só por informarem que já tiveram câncer”, disse Patrícia.
E foi exatamente isso o que aconteceu com as três pacientes oncológicas que participaram desta reportagem.
Joice, engenheira; Tatiana, atendente; e Karen, bacharel em Direito. Uma recém-casada, outra com os primeiros meses do primeiro netinho dentro de casa e a terceira com a filha grávida. Todas com suas vidas a pleno vapor, quando o diagnóstico surgiu “do nada”. Não aparentavam estar doentes, não sentiam nada. Até que descobriram que estavam com câncer de mama.
Joice Mendonça de Jesus, de 37 anos, é casada e mãe do pequeno Érick, de quatro anos. Joice fugiu do esperado em quase todos os passos da doença, reforçando os estudos de que se descoberto precocemente as chances de cura passam dos 90%.
Formada em engenharia de produção, tecnóloga de petróleo e gás e técnica administrativa, ela estava casada há menos de dois anos, quando sentiu um caroço num dos seios durante um autoexame na hora do banho. Ela só tinha 30 anos e fugia da 'idade esperada’ para exames de imagens.
“Eu senti o caroço do tamanho de uma unha. Mas era duro e resolvi ir ao médico. Como era muito nova, a médica me passou uma ultrassonografia da mama. Enquanto esperava o resultado, que levou alguns dias, eu já sentia que estava com alguma coisa. Não sei explicar, mas eu sabia. E quando saiu o diagnóstico, só tive a certeza”, explicou a jovem.
Mas, seguindo a “linha” de contrariar o esperado, Joice não encarou sozinha. O marido foi o principal suporte ao longo da caminhada e a acompanhou em todas as etapas.
“Ele acabou ficando desempregado. Eu também estava. Então foi um período muito difícil. Mas, ao mesmo tempo, foi fundamental, pois ele me acompanhou em cada passo, cada sessão, cada ida ao médico. Foram seis sessões de quimioterapia, mastectomia, radioterapia… e ele ao meu lado. Cortar os meus cabelos, que sempre foram longos, foi uma parte muito difícil para mim. Inclusive, foi nesse momento que eu entrei no Unidas Pela Vida. Eu fui informada que eles faziam perucas com o próprio cabelo da paciente e fui me informar. E a cada passo meu marido estava comigo”, explicou Joice.
A união entre o casal aumentou e a jovem passou por todas as etapas, vencendo. Até que, mais uma vez, fugiu da regra. Durante o tratamento complementar com hormônios, Joice engravidou.
“Eu sempre sonhei em ser mãe, mas tinha consciência que isso poderia não acontecer. A hormonioterapia é um processo para acelerar a menopausa e, com isso, a chance de engravidar naturalmente é muito baixa. E mesmo assim, não era indicado, já que eu estava em tratamento. Por isso fui colocar um DIU e no dia de colocar, eu descobri que estava grávida. Foi um choque, um susto. Eu saí do exame e fui direto falar com o meu médico. Paramos meu tratamento e eu segui com a gravidez”, relembrou.
Apesar do susto, a gravidez de Joice seguiu bem e ela amamentou o filho até ele completar um ano e seis meses. Só então ela voltou para o tratamento, que seguirá por mais alguns anos. Seu filho, Érick, hoje com três anos, nasceu saudável.
Depois de presenciar o milagre da vida, Joice sentiu a necessidade de seguir. “Eu estava bem. Meu filho não mamava mais, e eu precisava voltar ao mercado de trabalho. Aí, a realidade é dura. Foi quando fiz uma reunião com a Patrícia sobre a questão que enfrentamos na hora de concorrer a uma vaga de emprego. Ou a pessoa precisa mentir na hora da entrevista, não contar que teve o câncer e seguir mentindo o tempo todo, quando precisar se afastar para os exames ou para as consultas, ou a pessoa já perde a vaga assim que fala que teve câncer. Pois o empregador não dá a oportunidade para uma pessoa que vai ter que se ausentar do trabalho por uma ou duas vezes no mês”, contou a jovem.
“Por isso marcamos a reunião com Patrícia, pois era preciso pensar em um incentivo aos empresários. Um projeto de lei, um selo, um incentivo mesmo. Algo para que eles percebam vantagem em nos contratar”, falou.
Mas, assim que soube dessa iniciativa do Unidas Pela Vida, o cirurgião Edmar abraçou a causa e contratou ex-pacientes para atuarem na sua clínica de quimioterapia, em São Gonçalo.
Joice, Tatiana e Karen, atualmente trabalham juntas, e usam suas experiências como fonte de incentivo e apoio a outras pacientes.
“A gente só ganhou com elas aqui. São profissionais qualificados, iguais a outras mulheres que nunca tiveram tumor. Porém, elas têm uma coisa que outras não têm: vivência. Elas já estiveram sentadas esperando a quimio. Elas sabem como é difícil, doloroso e assustador o processo. E estão ali e atendem, acolhem, oferecem esperança quando elas contam o que passaram”, afirmou o diretor da clínica.
“Vejo meu filho como presente de Deus. Não há outra explicação. Vejo ele como presente de Deus na minha vida. E depois que tive o Erick eu ganhei uma força tão grande. Se eu consegui ser mãe é sinal que eu posso virar esse jogo e ajudar a quem está passando por isso”, afirmou Joice, que atualmente é a responsável pelo atendimento na clínica em que trabalha.
Quem também passou pelo processo de recuperação do câncer de mama e atualmente é uma das funcionárias da clínica é Tatiana França, de 46 anos. Tati, como gosta de ser chamada, recebeu o diagnóstico com 39 anos. A descoberta do caroço foi durante o expediente, na pizzaria em que trabalhava.
“Eu abaixei pra pegar o papel que tinha caído e senti o caroço. Fui ao médico, fiz os exames e escutei da médica: “procura logo um mastologista, hein. Essa semana perdi duas pacientes com câncer de mama”. Ela jogou assim e eu ainda não tinha assimilado tudo. Foi quando, em um sábado, eu joguei na internet e apareceu o Espaço Rosa. Mandei mensagem e no mesmo dia a Patrícia me respondeu. Em um sábado mesmo. Na segunda, eu já estava lá fazendo os exames”, contou.
Após o diagnóstico Tati reuniu os pais, os dois filhos e contou que estava doente. O então namorado, com o qual ela comemorava dez anos de relação, estava preso e foi poupado da notícia no início. Contudo, quando soube, a abandonou.
“Eu falei que estava doente e que ia começar o tratamento. Meu namorado, com quem eu estava junto há muito anos, estava há quatro anos preso e eu segui com ele. Ia a todas as visitas, levava tudo. Aí, em uma visita, contei para ele. Logo depois, um dia antes de fazer a primeira quimioterapia, eu fui informada na porta do presídio que ele tinha cancelado minha carteirinha de visitante, porque ele não queria visita de doente”, relembra.
Apesar da dor do abandono, Tati iniciou o tratamento. O casal de filhos, com 21 e 22 anos, foi seu suporte. “Fiz a quimio e quando o cabelo começou a cair eu logo quis cortar. Aí eu lembro do meu filho falando que eu fiquei linda careca. Isso me deu mais força. Ele também raspou o cabelo junto comigo”, recordou.
E depois de vencer a doença, Tati também não conseguia mais emprego. “Doutor Edmar estava cansado de me dar laudos para entrevistas de emprego. Estava tudo certo até saberem que eu não era contratada. Até que ele me chamou para trabalhar aqui”, relembra.
Para Tatiana, a vaga de trabalho significou um novo começo. “Eu não posso dizer que o câncer foi bom, pois é muito difícil passar por aquilo. Mas existem coisas na vida que a gente não entende o porquê de passar, mas que é necessário. Antes do câncer eu não vivia, eu sobrevivia. Hoje eu vivo, eu saio, eu me arrumo. Sou muito grata pelo meu emprego, adoro trabalhar aqui e poder ajudar as pacientes”, afirmou Tati, que já fez a reconstrução mamária.
Karen Gonçalves Guerreiro, de 40 anos, foi diagnosticada com câncer de mama aos 37. Ela monitorava, com exames de imagens, uma glândula de gordura, quando descobriu a doença. Formada em Direito, trabalhava como conciliadora no Fórum. Casada e com dois filhos, a família estava à espera do primeiro neto. Com a filha grávida, preferiu não dar a notícia naquele momento.
“Minha família é muito festeira e eu descobri perto do dia das mães. Eu não queria atrapalhar os planos de comemoração e preferi não falar nada por um tempo. Foram uns 20 dias que eu vivi tudo sozinha. Mas depois, já mais forte, com mais informações eu contei e eles me apoiaram muito. Primeiro eu tive que consolar a todos, mas depois seguimos juntos e eles foram fundamentais”, explicou.
Firme no objetivo de vencer a doença, Karen não desanimou. “Eu não perguntava nem qual grau estava, o que eu tinha. Minha pergunta era se eu tinha chance de vencer a doença. O médico disse que sim e eu falei “então vamos atrás da cura”. O que é um cabelo quando a vida está em jogo? Meu marido que raspou minha cabeça. Foi uma fase e passou”, ensina.
Mas a força que Karen recebia em casa nem sempre refletia o que acontecia na rua. “Os olhares me incomodavam muito. No ônibus, ninguém senta ao seu lado. Te olham como se, por você estar careca, você tivesse alguma doença contagiosa. E no meu trabalho, por exemplo, quando eu perdi o cabelo, eu também perdi a possibilidade de atuar. Eles falaram que iam me poupar, mas estão me poupando até agora”, relembrou.
Para ela, a atitude da equipe de trabalho foi suficiente para não querer mais atuar no Direito. “Como eu vou ter vontade de voltar a trabalhar com a justiça se nem a justiça me tratou como igual?”, questionou.
E foi por isso que ela, após vencer a doença, iniciou a faculdade de Nutrição. E hoje, ela também trabalha na clínica, ao lado de Joice e Tati. “Os pacientes precisam ter uma alimentação específica e eu comecei a estudar para me alimentar corretamente e depois ingressei na faculdade para poder ajudar outros pacientes. Quando fui chamada para trabalhar aqui, não tive dúvida. A gente faz porque sabe o que os pacientes estão passando. No final de semana, depois do expediente… eu só saio quando sei que não deixei nada para o dia seguinte, porque, às vezes, um dia sem a quimio pode fazer diferença”, explicou.
O Doutor Edmar foi o primeiro a entrar em parceria com o Unidas Pela Vida e contratar as pacientes. Mas, o projeto busca novos parceiros para que outras mulheres recebam a chance de voltarem ao mercado de trabalho. Instituições de ensino que possam contribuir com qualificações profissionais também são bem vindos nessa parceria.
Quem passou pelo câncer encara a vida diferente. Para nós, tudo é mais intenso, mais imediato Joice Mendonça Engenheira
“Quem passou pelo câncer encara a vida diferente. Para nós, tudo é mais intenso, mais imediato. E quando a gente recebe a chance de voltar ao mercado de trabalho é mais uma vitória. A doença ensina que na vida não podemos desperdiçar oportunidades e a gente agarra e faz o melhor possível. Então, se você é empresário, dê uma chance a quem venceu a doença e precisa retornar a viver. Posso garantir que você não vai se arrepender”, afirma Joice.
Além de parcerias que ofereçam vagas de trabalho ou qualificação profissional, o projeto também busca profissionais que queiram doar seu talento e seu tempo em prol dessas mulheres. Como é o caso do cabeleireiro Sérgio de Mattos, o Serginho Tesoura de Ouro, de 65 anos, que trocou seu salão de beleza, em uma área nobre de Niterói, para atuar dentro da sala do projeto em São Gonçalo.
Isso aqui é um chamado e eu peço força todos os dias para seguir fazendo o que faço Serginho Tesoura de Ouro Cabeleireiro
“Quando eu fui convidado eu não pensei duas vezes. Isso aqui é um chamado e eu peço força todos os dias para seguir fazendo o que faço. Eu tenho títulos, troféus e reconhecimento, mas minha vitória mesmo é ter saúde para seguir fazendo o que faço”, contou o profissional, que durante três vezes na semana faz atendimento no Unidas Pela Vida, sem custo nenhum. Ele também desenvolveu uma técnica onde faz o corte do cabelo da paciente e, com a participação de outros voluntários, desenvolve perucas para que as mulheres usem o próprio cabelo perdido na época da quimioterapia.
Quem também faz parte desse grupo é o empresário e tatuador Douglas Espíndola, de 33 anos. Dono de um estúdio de tatuagem no Centro de São Gonçalo, o profissional, junto com sua equipe, faz gratuitamente o lacinho rosa, símbolo da luta contra o câncer de mama na pele das pacientes. Além disso, ele também faz cobertura de cicatrizes e escreve frases como: ‘Seja forte e corajosa’, muito usada pelas mulheres do grupo.
“São mulheres que nunca pensaram em fazer tatuagens, por exemplo. Mas depois que vencem o câncer querem se reinventar, pois o velho ficou para trás”, explicou o jovem que deixa claro o que o motivou a escolher o projeto.
“Eu passei a presenciar o dia das meninas de perto. E eu via a qualquer hora, em qualquer lugar elas paravam o que estavam fazendo para ajudar. Eu via que ali o que era feito era de verdade e eu fiquei pensando no que eu poderia ajudar. Por isso, além das tatuagens, a gente sempre faz ações onde os clientes ganham desconto se fizerem doações, seja de alimentos, panetones, o que for da época, e a gente repassa tudo para o Unidas Pela Vida”, finalizou.
Quem quiser conhecer mais do projeto Unidas Pela Vida, basta acessar a página nas redes sociais buscando pelo nome Espaço Unidas Pela Vida.