Violência doméstica: um soco que atinge toda a família
Na semana em que a Lei Maria da Penha completa 18 anos, OSG conta a história de uma mãe que luta para tirar a filha de um relacionamento abusivo e violento
Sancionada em 2006 com o objetivo de combater a violência doméstica e familiar e sendo considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha completou 18 anos na última quarta-feira (7), mas, apesar dos avanços na legislação, a opressão às mulheres só vem aumentando.
Em meio a um cenário de machismo e misoginia, a reportagem conta uma história recente onde o relacionamento abusivo e a violência contra o gênero se perpetuaram entre gerações de uma mesma família.
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Em entrevista a O SÃO GONÇALO, Marta Cristina Sabino de Souza, 47 anos e Vanessa de Oliveira de Souza, 32 anos, - mãe e prima de uma jovem que, segundo relatos das familiares, está vivendo um relacionamento violento e abusivo com um influenciador gonçalense, há cerca de um ano e meio-, contaram sobre a luta enfrentada diariamente para que a vítima consiga se libertar dessa prisão sem grades.
Sequelas de uma relação abusiva
Tudo começou na noite do último domingo (4), quando a vítima foi ao encontro da prima, que estava num bar em São Gonçalo.
"Deu meia hora que ela estava lá e ele chegou já gritando que era pra ela ir embora. Ele agarrou no cabelo dela e saiu levando. Fui atrás porque o meu celular também estava no bolso dela e eu precisava pegar. Quando cheguei do lado de fora ela já estava sendo agredida por ele, foi quando agarrei nele pra tentar fazer com que soltasse a minha prima, mas eu acabei caindo depois que ele me empurrou. Pedi por diversas vezes que ela não fosse com ele e ele continuava gritando exigindo que ela subisse na moto, e pra ele parar, ele foi", contou Vanessa.
Assim como em alguns casos de violência doméstica, a vítima, por vezes, dá sinais de que a relação está insustentável e que corre reais riscos de vida, mas, ainda assim, a dependência emocional acaba invalidando todas as tentativas de saída dessa dinâmica abusiva.
Ainda segundo Vanessa, que testemunhou o início das agressões daquela noite, a vítima ligou, pouco tempo depois, pedindo socorro, alegando que seu companheiro iria matá-la.
"Esperei meu marido chegar e fomos pra casa dela, mas chegando lá tudo já tinha acontecido, ele já tinha a agredido, e isso não vem de agora, ele já bate nela há muito tempo, mas essa foi a única vez que a minha prima pediu socorro. Ele fura ela com chave de fenda, enforca até que ela desmaie, mas sempre, em seguida, vem com frases como "eu te amo", "eu faço isso porque eu tenho ciúmes, não vejo minha vida sem você", e ela acaba aceitando. Eu falei pra minha prima que ela está doente para aceitar que um homem faça isso com ela, que pode até chegar a matar. Ela não está feliz, mas não consegue sair dessa relação", contou.
Vanessa, Marta e outros parentes chegaram ao local para defender a vítima, momento que foi até mesmo registrado em um vídeo publicado pela família nas redes sociais. Porém, mesmo machucada, a vítima, que inicialmente pediu socorro não só para a prima, mas também através de uma ligação para a mãe, insistia para que os familiares parassem, que não brigassem com seu companheiro e fossem embora.
"Quando recebi a ligação dela pedindo socorro e vi a imagem, do rosto dela todo ensanguentado, achei que ele tivesse esfaqueado ela, fiquei desesperada, perdi até os meus sentidos, só queria ver ela. Quando chegamos lá, ele havia trancado ela dentro de casa, mas conseguimos entrar. Até esse momento ela ainda estava acusando o companheiro dela, mas quando viu que todo mundo foi pra cima dele, pressionando sobre a agressão, ela se colocou do lado dele e se voltou contra nós. Chamamos a polícia mas acabou não dando em nada, ela afirmou que havia batido com a cabeça na pia e eles voltaram juntos para a casa deles, onde ele até publicou um vídeo, com filtro no rosto deles, já que a minha filha estava machucada, debochando da situação e dizendo que a relação deles estava ótima", afirmou Marta, que mesmo triste com toda a situação, vem lutando incansavelmente pela vida da própria filha.
Feminicídio
A misoginia, discriminação, aversão ou ódio contra as mulheres ou contra a condição feminina ainda estão presentes no mundo todo, principalmente em países mais conservadores, e em países em desenvolvimento, como o Brasil, em que a educação ainda não atinge índices considerados satisfatórios. O resultado disso é a violência doméstica, os altos índices de estupro, os relacionamentos abusivos e, nos casos mais extremos, o feminicídio (crime de ódio baseado no gênero, mais definido como o assassinato de mulheres em violência doméstica ou em aversão ao gênero da vítima).
"Eu como mãe sei que ela não está bem, porque em sã consciência ela não iria aceitar uma coisa dessas. Minha filha era família, participava de todos os nossos encontros, reuniões, e ultimamente nem na minha casa ela vai, porque ele proibiu. Eu vou lutar até o fim para que ela não vire estatística, porque se você dá com uma chave de fenda na cabeça de uma pessoa, bate com a cabeça dela na parede, isso é o que? É carinho? É amor?", disse a mãe da vítima.
"Eu assisto reportagens todos os dias de casos de feminicídio. O cara bate, depois pede perdão e fala que não vai acontecer mais. E é o que vem acontecendo com a minha filha. Ele a machuca, pede perdão e fala que eles são pra sempre, que sem a minha filha ele não é nada. É muito triste, estou vivenciando tudo que antecede um crime como esse, na prática, "dentro" da minha própria família", completou Marta.
Ciclo que precisa ser interrompido
Em uma família com muitas mulheres, muitas já foram as superações enfrentadas dia após dia. Emocionada, Marta relatou que também foi vítima de agressões pelo ex-companheiro, pai da filha que vem sendo vítima, o que corrobora com a ideia de um ciclo que se repete e acaba se perpetuando de geração em geração.
"Eu já vivi isso na pele, com o falecido pai dela, mas eu consegui sair dessa relação e nunca mais voltei. Ela tinha seis meses de vida e eu larguei ele, por causa dessas atitudes, que queria me colocar dentro de uma redoma de vidro, me maltratava, me batia, arrumava problema com todo mundo e chegou a quase matar o meu irmão, tudo por ciúmes. Fiquei fugindo por um tempo até conseguir me reestabelecer e ele me esquecer. Acordei a tempo e vejo que a minha filha não está acordando", afirmou.
A família também se preocupa com as duas filhas da vítima.
"Minha prima tem duas filhas, duas meninas. E eu falei pra ela, sobre o exemplo que ela está dando, porque daqui a pouco a mais velha arruma um namorado, e aí vai achar normal homem bater em mulher? Porque começa com uma agressão verbal, com um tapa, e vai só ficando pior. Isso precisa acabar, esse ciclo precisa ser rompido", disse Vanessa.
Toda a dinâmica de uma relação abusiva existe para prender a vítima através da dependência do outro, seja essa dependência emocional, financeira ou de outro gênero. Desse modo, terminar um relacionamento abusivo não é como terminar um namoro ou um casamento qualquer.
Além de estar com a autoestima em frangalhos e não ter mais noção da própria identidade fora do relacionamento, muitas das vítimas desse tipo de relação precisam de mais que esforço para sair dessa situação, antes que seja tarde. A ajuda de amigos e familiares, acompanhamento psicológico e orientação jurídica são aparatos que fazem toda a diferença para que a sobrevivente se sinta segura para abandonar o seu abusador.
"Eu não sei mais o que fazer, ele é um opressor, psicopata, manipulador. Meu mundo caiu desde que vi o rosto da minha filha daquele jeito, coberto de sangue, e ela continua lá, com ele, abrindo mão da própria vida, das filhas, da família, por alguém que só te trata mal, te oprime, te machuca. Eu como mãe não aceito isso. Nós não vamos desistir", declarou Marta, mãe da vítima.
Ajuda e investigação
Após a agressão do último domingo, vítima, autor e familiares foram conduzidos a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) de São Gonçalo. Contudo, a vítima afirmou que o ferimento no rosto era proveniente de uma batida na pia. O policial, no entanto, registrou o caso como fato atípico e enviou o registro para a apreciação da delegada que chamou as testemunhas para depor.
"Com o avançar das investigações, que estão só no começo, nós já mudamos o registro de fato atípico para vias de fato", explicou um investigador.
Em busca de orientação e apoio, a mãe da vítima está sendo acolhida pelos especialistas do Movimento de Mulheres de São Gonçalo. Além de orientações jurídicas, o local também oferecerá apoio emocional para que essa família siga lutando para que mais uma mulher não seja morta 'em nome do amor'.
"Eu só não quero perder minha filha e amanhã está chorando porque ela virou estatística".