Profissão coveiro: o valor invisível de um trabalho essencial, árduo e carregado de respeito
Em entrevista a O SÃO GONÇALO, cinco coveiros do Cemitério Maruí revelaram suas histórias, desafios e desejos para o futuro da profissão
Falar sobre a morte nem sempre é fácil e confortável para a grande maioria das pessoas. Considerado um "tabu", diante da complexa gama de sentimentos e ações envolvidas, o fim da vida simboliza não só o medo do rompimento com os laços firmados e estabelecidos ao longo da existência, como também reflete a única certeza que se pode ter sobre o "destino" de cada um.
Neste 2 de novembro, feriado em que é comemorado o Dia de Finados, a reportagem especial de O SÃO GONÇALO entrevistou cinco coveiros no Cemitério do Maruí, no Barreto, em Niterói. Felipe Mendes Ramos, 22 anos; Lucas Pereira da Silva, 30 anos; Rodrigo Pessoa da Silva, 36 anos; Luiz Fernando de Araújo, 46 anos; e Rosiel Faustino da Silva contam suas histórias, aflições e anseios no exercício da profissão enquanto demonstram que, mais do que "abrir buracos", suas funções também se expandem para o âmbito social, através da constante busca por adaptabilidade, respeito, empatia e competência para desempenhar tão difícil [e imprescindível] função.
Desmistificação da profissão
Participar de um enterro pode ser um momento desafiador, principalmente quando envolve a perda de um ente querido. Porém, tendo como ambiente de trabalho justamente o cemitério, local onde se expressam os mais variados tipos de sentimentos, como tristeza, dor, saudade e até mesmo paz e tranquilidade, os coveiros representam o olhar racional e profissional deste momento, ao mesmo tempo empático, neste encerramento de ciclo no qual toda a sociedade está condicionada a passar.
Simpáticos, atenciosos, extremamente profissionais e experientes no que diz respeito ao conhecimento do cemitério como um todo, os coveiros entrevistados, que juntos somam 15 anos de profissão, relatam que, sem qualquer tipo de preconceito, agarraram a oportunidade de exercer esse trabalho de forma digna, prestativa e honesta.
"Eu entrei aqui trabalhando como auxiliar de serviços gerais, mas logo no ano seguinte tive a oportunidade de passar para coveiro e gostei da profissão. Já estou aqui há 6 anos, exercendo meu trabalho da melhor maneira possível, sempre muito grato por ter uma atividade e poder desempenhá-la. Porque, pra mim, sinceramente, não tem nenhuma diferença de quem trabalha aqui para quem trabalha do lado de fora. O trabalho é o mesmo. Tem gente que fala de forma debochada: 'ah, você trabalha no cemitério', como se fosse algo 'menor', só que, trabalhando aqui, a única coisa que a gente faz de 'diferente' é ter que aprender a lidar com a dor dos outros, né, ter essa consciência, cabeça boa, para saber lidar com a situação e continuar fazendo o trabalho da melhor forma", contou Lucas Pereira.
E se não fosse o coveiro? Quem iria enterrar?
A profissão de coveiro é, muitas vezes, estereotipada pela falta de informação da sociedade, que relaciona essa atividade, inteiramente ligada ao tema da morte, a um trabalho "de menor importância", causando o desprestígio e a invisibilidade social desta função.
Porém, mesmo diante do prejulgamento, entre as profissões que trabalham com a morte, a profissão de coveiro possui relevância muito grande, visto que os profissionais desta área são os únicos a realizar o enterro do cadáver, no momento em que este é coberto por terra em seu túmulo. Estes profissionais também cuidam, de forma assertiva e cuidadosa, da última "morada" de uma pessoa já falecida, visto que preservam e realizam a manutenção dos túmulos e a exumação dos restos mortais, contribuindo diretamente com a imortalidade simbólica do finado, que pode ser conservada através da manifestação de saudade de seus entes queridos.
A experiência mostrou a esses profissionais que os problemas em cemitérios não estavam nos mortos, e sim no preconceito da sociedade.
"É um serviço que nem todo mundo quer fazer, nem todo mundo quer estar aqui dentro trabalhando. Então, os que fazem poderiam ser um pouco mais valorizados. Porque não é qualquer um que você pergunta 'quer trabalhar dentro do cemitério?', 'quer trabalhar de coveiro?' e se coloca à disposição. Se colocar em números, acredito que uns 90% não vão querer", disse Rodrigo Pessoa, que completou um mês atuando nesta área.
Aprender a lidar com a dor
A partir da difícil compreensão de que o fim da vida é uma certeza para todos, aprender a lidar com a morte de maneira natural ainda não é de simples adaptação. Existe uma tentativa, por parte dos coveiros, de contornar os estigmas presentes na profissão. Mesmo que em meio a esta tentativa de desconstrução social ideológica, os coveiros mostram que, junto ao seu lado profissional, é necessário que a humanidade e empatia se façam presentes no dia a dia da função.
"A verdade é que a gente não aprendeu a lidar totalmente com isso. Cada dia é um dia diferente, e a gente vai lidando com isso, vai se acostumando, até porque não é uma coisa fácil para quem está ali, perdendo um ente querido. Mas isso faz parte da nossa profissão, passou a fazer parte da nossa rotina, e é dessa maneira que a gente lida, de forma profissional. A gente sabe separar as coisas, de não levar para o lado emocional e sim como o nosso trabalho, então é como se a gente fosse blindado por dentro para conseguir estar aqui realizando nosso serviço", disse o coveiro Luiz Fernando de Araújo.
"É igual em qualquer trabalho, onde no início a gente tem receio, mas depois vai ganhando confiança e levando de boa. Uma coisa que a gente preza muito é o respeito pelos familiares e amigos da pessoa que vai ser enterrada. A gente se coloca no lugar e sempre trata com muito respeito e profissionalismo", disse o paraibano Rosiel Faustino, que completou: "aqui é um lugar até tranquilo demais. As pessoas falam de medo, de receio, mas eu garanto que a única assombração que tem aqui é a da sombra das árvores", contou em tom descontraído, arrancando a risada dos colegas de trabalho.
Todo mundo parou na pandemia. Eles não
Na escala de momentos difíceis que os coveiros passaram dentro da profissão, o período da pandemia da covid-19 está em primeiro lugar. Os profissionais não pararam de trabalhar em nenhum momento, mesmo diante do "lockdown" (medida preventiva obrigatória que consiste no bloqueio total), visto que, com tantas mortes sendo registradas diariamente, a função destes profissionais se tornou ainda mais essencial.
Questionados sobre o medo diante da incerteza de continuar exercendo seu trabalho em meio a uma doença desconhecida, que provocou a morte de milhares de brasileiros, os coveiros revelaram que, por mais difícil que tenha sido esse período, puderam, ainda assim, colocar em prática o "amor ao próximo", sendo, em muitos casos, os únicos presentes no enterro de uma vítima da doença.
"Foi uma época muito complicada pra gente, mas, principalmente, para as famílias, que não podiam entrar para se despedir do seu ente querido. A gente tinha que explicar, saber contornar as situações. Às vezes, eram mais de 30 pessoas para se despedir de alguém, e não podiam entrar, e às vezes também não vinha ninguém. Então, em algumas situações, nós fomos a família daquelas pessoas falecidas, porque só nós podíamos estar com elas ali naquele momento", contou Felipe Mendes, que trabalha no Maruí desde os 18 anos.
"A gente também não sabia como era essa doença, foi tudo novo pra todo mundo, mas a gente continuou trabalhando. Usamos máscaras, luvas, roupas especiais e tudo que era necessário pra conseguir trabalhar diante de uma doença que a gente nem tinha conhecimento. E a gente ficava preocupado de ver tantas mortes, não tinha como ser diferente, temos família em casa. Mas e se não tivesse a gente, como ia ser? Temos que continuar", ressaltou o coveiro Lucas Pereira.
De acordo com o Secretário Municipal de Obras e Infraestrutura da Prefeitura de Niterói, Vicente Temperini, à frente da gestão dos cemitérios desde 2017, todos os coveiros tiveram o suporte necessário para continuar atuando mesmo durante o período mais crítico da pandemia da covid-19.
"A Prefeitura deu todo o suporte para eles, e a Vigilância Sanitária também acompanhou de perto. O cemitério não fecha, são 12h por dia, todos os dias, então nesse período todo em que a cidade parou e fechou, eles continuaram. Realizavam exames mensais para acompanhamento da saúde e, assim que foi iniciada a vacinação, eles foram vacinados como grupo prioritário", revelou o Secretário.
Valorização e reconhecimento
Mesmo diante de estigmas, invisibilidade social e preconceitos atribuídos à profissão, os coveiros demonstram, através de um trabalho árduo e respeitoso, que são peça indispensável para o bom funcionamento da cidade. Suas funções exigem não só força física para a realização dos enterros, mas também equilíbrio e saúde mental para lidar com situações que fogem do controle racional e invadem o âmbito emocional de um ser humano.
"Somos trabalhadores que respeitam a profissão, que respeitam o ambiente, os familiares, e tentamos fazer o nosso melhor. Sabemos que é uma profissão que, para muitos, é 'diferente', mas que é essencial. A morte faz parte da vida, então fazemos o nosso trabalho dignamente e esperamos que as pessoas respeitem isso também", destacou o coveiro Luiz Fernando.