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'Quem matou? Quem mandou?' Prescrição simbolizou um segundo ‘enterro’

Familiares lamentam a falta de respostas 20 anos depois

relogio min de leitura | Escrito por Renata Sena, Ari Lopes, Felipe Galeno e Kiko Charret | 10 de agosto de 2023 - 10:31
Imagem ilustrativa da imagem 'Quem matou? Quem mandou?' Prescrição simbolizou um segundo ‘enterro’

O Código Penal Brasileiro prevê que os crimes de homicídios prescrevem em até 20 anos, caso não seja apresentada a denúncia pelo Ministério Público (MP). O corpo de Carlos Lopes da Silva, o Carlinhos da Marmoraria, foi enterrado por amigos e familiares, no Cemitério Parque da Paz, no Pacheco, em São Gonçalo, no dia 8 de agosto de 2003. Vinte anos depois, no dia 30 de julho de 2023, ele foi enterrado novamente pela  (in)justiça, com a prescrição do crime, sem que nenhum suspeito por sua morte fosse indiciado ou denunciado pelo Ministério Público.

Clique aqui para ler o episódio anterior: 'Matar político virou algo comum?'

O ex-vereador e único filho de Carlinhos, o advogado Thiago de Araújo Silva, de 41 anos, alegou que o caso do pai já havia sido ‘enterrado’ pela polícia e pela justiça há muitos anos. “O crime prescreveu agora dia 30 (de julho). Mas, para nós, a data mais forte é o dia 7 de agosto mesmo, quando os médicos atestaram sua morte. E essa data também acabou de completar vinte anos. Mas, na verdade, a  prescrição de agora já aconteceu há muito tempo, pois poucos dias após o crime a sensação é que ninguém fazia mais nada. Em ‘muito pouco tempo’ a polícia parou. Um monte de gente se aproximava para me mandar deixar para lá. Parecia que todo mundo sabia o que aconteceu, menos eu”, recordou Thiago, que seis anos depois seguiu o caminho do pai e foi eleito vereador em São Gonçalo.

Para familiares de Luís do Posto, que teve o crime prescrito em 8 de junho desse ano, o ‘enterro’ da esperança por justiça aconteceu no dia em que os amigos enterraram o político. “Não houve investigação nenhuma. Pode parecer que estou sendo pesado nas palavras. A polícia da época poderia querer mostrar papéis para dizer que estava trabalhando. Mas a realidade é que isso nunca aconteceu. Nenhum familiar foi ouvido, nenhuma suspeita foi apurada. Ninguém queria chegar aos criminosos”, desabafou um familiar.

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    Delegados Renato Chernicharo e Denis Aceti participaram das primeiras investigações
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Embora familiares do vereador Beija, cujo crime prescreveu em fevereiro de 2018, não tenham aceitado falar sobre o caso, a sensação de impunidade ainda é presente 25 anos depois, entre amigos e vizinhos que ainda moram nas redondezas onde o parlamentar foi assassinado, no Rocha. “Todo mundo na rua só comentava sobre o ocorrido. Foi na frente de muita gente e mesmo assim a polícia não falou com quase ninguém. Até hoje não tivemos resposta para esse crime brutal”, desabafou uma testemunha.


O (des)caminho das investigações

O atentado contra Carlinhos foi registrado inicialmente como tentativa de homicídio, na 72ªDP (Mutuá); assim como o assassinato de Beija, que foi registrado como homicídio doloso, na mesma delegacia distrital responsável pela área onde os crimes ocorreram. Já a execução de Luís do Posto foi registrada na 75ªDP (Rio do Ouro). Dois dias depois do atentado contra Carlinhos, o então secretário estadual de Segurança, Anthony Garotinho, determinou que o caso fosse investigado por policiais de uma força tarefa formada por um delegado e dez policiais da Delegacia de Homicídios da Capital. Na mesma semana essa força tarefa assumiu, também, as investigações das mortes de Beija e Luiz do Posto.

Apesar de policiais que investigaram o caso na época lembrarem de possíveis nomes de suspeitos que foram surgindo ao longo da apuração, ninguém soube falar até que ponto as investigações conseguiram avançar. Um dos motivos é que além da mudança de delegacia, as investigações também mudaram de cidade, dificultando até que promotores e delegados, que atuaram na época, lembrassem dos detalhes percorridos.

Antropóloga Jacqueline Muniz
Antropóloga Jacqueline Muniz |  Foto: Divulgação

“Fica-se trocando a investigação de mãos, algemando quem quer trabalhar. Segue o jogo de empurra, pois as melhores lavanderias do dinheiro do crime são as candidaturas eleitorais criminosas. A Polícia Civil recebeu muitos investimentos, mas no Rio há banalização da morte e isso escasseia os recursos policiais. É mais fácil investigar um homicídio do que um furto, pois em homicídios há intencionalidade, relação. Furto, não. Mas, a política do enfrentamento não combate o crime, só o fortalece”, explica a antropóloga Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que participou dos estudos e implementação das Delegacias Legais no Estado do Rio.

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Em 2015 as delegacias foram informatizadas por completo, e casos antigos ainda em andamento ou sem conclusão foram remetidos para as Delegacias de Acervos Cartorários (Deac’s), onde deveriam continuar sendo investigados. E são, segundo delegados ouvidos pela reportagem de O SÃO GONÇALO. Mas, a dificuldade de encontrar testemunhas e colher depoimento de familiares que após anos do crime preferem não falar mais, dificultam o trabalho de investigação, junto com a falta de estrutura, falta de policiais e falta de investimentos nas unidades que ‘nasceram com data marcada para morrerem’.

“As Deac’s vão acabar quando todos os inquéritos forem digitalizados por completo e chegarem ao período de prescrição dos crimes. Se for analisar em detalhes, em 2035 o último caso das Deac’s prescreve, e aí não terá mais o porque essa especializada continuar existindo”, explicou um delegado da polícia Civil, que não quis se identificar.

Por todos esses motivos acima, é que após dias de buscas a equipe de O SÃO GONÇALO não conseguiu localizar os inquéritos para entender se eles foram arquivados anteriormente ou se ficaram sendo ‘velados’ e prescreveram no período final de 20 anos. Outra pergunta para a qual  também não conseguimos resposta da Polícia Civil é para qual Deac os inquéritos que apuravam as mortes de Beija, Luiz do Posto e Carlinhos da Marmoraria foram enviados. O delegado titular da 16ªDeac São Gonçalo, Oscar de Sá, os casos nunca foram enviados para lá.

Podem, no entanto, terem sido encaminhados para a 10ªDeac, responsável pelo arquivo das especializadas tradicionais. Mas, lá eles também não foram localizados.

‘A Polícia gasta muito,mas gasta muito mal’

Promotor Paulo Roberto
Promotor Paulo Roberto |  Foto: Kiko Charret

Para o promotor Paulo Roberto Mello Cunha Júnior, as dificuldades enfrentadas pela polícia no ‘Caso Marielle’ não são tão diferentes das encontradas pelos policiais que investigaram as mortes dos três vereadores em São Gonçalo.“Claro que de 2003 até 2018 as coisas evoluíram. Em 2018, já com interferência da Polícia Federal, mais recursos, e mesmo assim, a investigação da morte da Marielle não foi concluída. Não chegaram ao mandante e podem nunca chegar. Em 2003, fazer esse mesmo tipo de investigação era algo improvável. Chega uma hora que a polícia não tem mais para onde ir e a investigação cai em um limbo. Toda investigação criminal tem um tempo. Com o passar desse tempo, as provas vão sumindo, vai se perdendo muita coisa”, explicou o promotor.

Paulo Roberto acrescentou ainda que em São Gonçalo o poder paralelo sempre foi atuante. “O que a gente vê hoje como milícia, sempre existiu em São Gonçalo. Chamavam de grupo de extermínio, grupo de segurança. Não tinha tanta dimensão econômica de exploração além da cobrança por segurança. Mas sempre existiu por lá. E em São Gonçalo tinha essa história de grupo de extermínio composto por policiais e políticos”, afirmou Paulo, que não atuou nas investigações das mortes dos políticos de São Gonçalo, já que os casos foram enviados para a Delegacia de Homicídios da Capital, única que existia na ocasião.

Já para a antropóloga Jacqueline Muniz, nesse período de quinze anos entre os assassinatos de Carlinhos da Marmoraria, Luiz do Posto e Marielle Franco, a polícia aprimorou as técnicas e as tecnologias usadas para realizar as investigações. O problema é que, segundo a doutora em Segurança Pública e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), falta prioridade.

“Não é uma questão de quantidade e sim de prioridade. A polícia gasta muito, mas gasta mal. O problema é com natureza política, onde faz-se a guerra contra o crime para produzir a paz do cemitério e a paz da propina. Em 1999, a Polícia Civil começou a receber inúmeros investimentos. Na ocasião, a taxa de elucidação de homicídios era de 8%. Atualmente a taxa desses crimes elucidados é de 12%, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública) ou de 11%, segundo dados do Sou da Paz. A verdade é que onde tem crime político, tem policial envolvido, e quando tem agentes do estado relacionados, as investigações vão para o final da fila. A guerra contra o crime algema a polícia e limita o policial que quer fazer o seu trabalho”, definiu a professora da Universidade Federal Fluminense.

Estado só tem 7.998 policiais civis. Ideal seria ter 23 mil

Vinte anos após a morte de Luís do Posto a 75ª DP (Rio do Ouro), onde o homicídio foi registrado inicialmente, segue igual, pelo menos na estrutura. A delegacia responsável pelo registro do caso do vereador até ganhou o Sistema Legal, mas nunca passou pelas obras previstas pelo programa.O número de policiais lotados nas delegacias também está longe de ser o considerado ideal. Relatório interno da chefia de Polícia Civil, ao qual O SÃO GONÇALO teve acesso aponta que o ideal seria o quadro ter 23 mil policiais civis atuantes no Estado, hoje. A realidade, no entanto, é de apenas 7.998 policiais civis atualmente, de  acordo com o mesmo documento. “O que mais assusta é que em 2001 tínhamos um efetivo de 12.500 policiais civis e hoje temos menos de 8 mil policiais. São 35% de policiais a menos, enquanto a população cresceu, segundo o último Censo do IBGE, de 14 milhões para 16 milhões. Um aumento de 15%. É uma conta que não fecha”, finalizou o delegado da Polícia Civil que falou com O SÃO GONÇALO, sob anonimato.


Releia as matérias anteriores da série:

➢ 'Quem mandou? Quem matou?' Matar político virou algo comum?

➢ 'Quem matou? Quem mandou?' Após 20 anos, crimes por mortes de vereadores prescrevem em SG

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