Como '2N' montou plano para mudar de facção e tentar 'golpe de estado' no Salgueiro
Segundo capítulo da Série Especial de 'OSG' mostra como houve 'racha' no 'CV' e porque o criminoso queria se manter no poder
Reportagens: Alan Emiliano, Ari Lopes, Renata Sena e Sérgio Soares
Edição: Ari Lopes e Sérgio Soares
Em meados de 2018, a Polícia Federal interceptou uma mensagem enviada por Antonio Ilário Ferreira, 55, o Rabicó, do Comando Vermelho (CV), preso num presídio federal. O destinatário, segundo as investigações seria Thomas Jayson Vieira Gomes, o 2N, então líder do tráfico no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo: "Irmão, se liga. Eu tô te pedindo, tô falando e você tem que cumprir essa porra aí, ou então sai ...então, veja bem o que eu tô falando para você. Se você não está satisfeito de trabalhar comigo, parceiro, e de ouvir o que eu tô falando, você deixa meu bagulho aí, certo parceiro?", dizia a voz no áudio.
Esse ultimato, segundo a Polícia, deu início a um 'racha', quebrando a até então sólida relação de confiança entre a cúpula do Comando Vermelho e 2N. Começava ali, uma disputa interna na facção, que em abril do ano seguinte levaria 2N a dar um 'golpe de estado', matar antigos aliados e pular de facção, adotando o codinome de 3N. Os detalhes dessa história, O SÃO GONÇALO revela no segundo capítulo da série 'Tráfico & Milícia, Uma Nova Firma'.
Estamos em abril de 2019. Desde 2016, o dia 14 de abril era comemorado com uma grande festa no Complexo do Salgueiro, formado por um conjunto de 12 comunidades às margens da BR-101, em São Gonçalo, com cerca de 20 mil habitantes e vivendo em condições de miserabilidade, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), de 2010. O local ainda é conhecido nacionalmente por abrigar o segundo maior lixão a céu aberto do país (fechado em 2015) e por ser o 'quartel general' de uma das maiores facções de drogas do Brasil. A data marcava o aniversário de Thomas Jayson Vieira Gomes, o 2N, que há três anos, desde os 24 anos, ditava as normas e comandava a venda de drogas no Complexo.
Relatórios do Setor de Inteligência da PM revelam que dois motivos levaram 2N a não comemorar seu aniversário de 26 anos, em 2019, suspendendo os shows que contavam com baile funk e pagode, animados por artistas famosos e a presença até de jogadores de futebol, como o atante Tales, do Vasco, que acabou morrendo no ano passado num acidente de moto: a chuva forte que durante dias seguidos atingiu São Gonçalo, e particularmente as comunidades do Salgueiro, causando enchentes e deixando centenas de moradores desabrigados; e as ameaças de perda de poder, com ordens vindas de dentro do presídio para que entregasse o 'cargo'.
Sentindo o perigo próximo, 2N, ao mesmo tempo que participava pessoalmente de operações de resgates de moradores ilhados dentro de casa, a bordo de um barco, fazia articulações para 'pular' do Comando Vermelho (CV) para o Terceiro Comando Puro (TCP). Para isso, convocou um grupo de 'crias' do próprio Salgueiro e cooptou outros insatisfeitos com as diretrizes do CV, integrantes de outras comunidades de São Gonçalo, para formar o que denominou de Tropa do Corinthians. Apesar de torcedor fanático do Flamengo, 2N transportava para o nome Tropa do Corinthians, a rivalidade entre os dois times de maiores torcidas do país para o confronto que previa entre o seu então 'clube', o CV, e o que passaria 'defender', o TCP.
Racha - Antes de 'pular' de facção, 2N sabia que corria perigo e que se não agisse rápido, acabaria morto. Pois já não gozava do mesmo prestígio junto aos 'chefões' do CV. A confiança começou a se enfraquecer em meados de 2018, quando passou a discordar das ordens que partiam da cúpula da facção, de dentro de presídios, e chegavam muitas vezes através de advogados ou cartas cifradas.
De acordo com relatos de pessoas próximas, 2N reivindicava maior autonomia para comandar os 'negócios' do tráfico no Salgueiro, pois argumentava que desde que assumira o cargo, após Marcelo da Silva Leitão, o Bigode, ser preso em junho de 2016, num sítio em Casimiro de Abreu, ele conseguira aumentar os lucros da facção. não só com a venda de drogas, mas cobrando taxas pelo serviço de TV a cabo clandestino, taxa de de mototaxistas e os roubos de cargas e carros de luxo ao longo da BR-101, que eram enviados para o Paraná e Paraguai, como moedas de trocas por drogas e armas.
Justamente esse sucesso e protagonismo à frente dos negócios, segundo as investigações e escutas autorizadas pela Justiça, levaram à derrocada de 2N. "Ele começou a diversificar as ações da quadrilha e alavancou o lucro da facção, inclusive com ataques à caixas eletrônicos. Mas, isso além de acarretar um maior número de ações policiais no combate ao grupo, gerou insatisfação da cúpula do CV sobre essas estratégias. 2N passou a questionar e desobedecer as ordens dos chefões presos, e acabou sendo considerado uma ameaça ao poder deles", contou um policial que acompanha há anos a disputa de poder entre facções em comunidades de São Gonçalo.
Mesmo após as 'broncas' recebidas da cúpula do CV, 2N continuou a não seguir as determinações vindas dos presídios, e teria iniciado a montagem de um arsenal próprio, comprando munições e armas, à revelia da facção, para montar a Tropa do Corinthians. Alertados por informantes da comunidade, no início dezembro de 2019, os líderes presos mandaram uma carta através de um advogado, ordenando que 2N passasse o 'comando geral' do Complexo do Salgueiro para um outro 'cria', Adenilton de Madureira Vasconcelos, o Tilu da Balança.
Quem recebeu ordens da cúpula do CV para gerenciar a troca foi Ricardo Severo, o Faustão, do Complexo da Penha, no Rio. Mas no dia 6 daquele mês, Tilu acabou executado por 2N e seus inseparáveis seguranças e amigos de infância: Alexandre Souza Lima, o Xandinho, e Luiz Ricardo Monteiro Cunha, o Ricardinho, segundo investigações da Divisão de Homicídios de Niterói, Itaboraí e São Gonçalo (DHNISG).
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Capítulo 1
'Terceiro Comando Puro' entra na disputa de milicianos por áreas de Itaboraí
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E o clima, que já andava 'quente', fez a temperatura subir ainda mais no Salgueiro. Após a morte de Tilu, 2N, também já sem confiar nos 'superiores', contra-atacou com um ultimato à facção: "Se trocarem o comando do Salgueiro e tirarem os 'crias', nós deixaremos a facção", anunciou num áudio, repassado nos grupos de whatsapp dos criminosos do CV, na época.
A ameaça de 2N, de 'desertar' do CV chegou até às lideranças do TCP em comunidades da Alma, em São Gonçalo, e nos Complexos da Maré e da Pedreira, no Rio, que passaram a buscar aproximação com o 'rebelde', até então rival. Afinal, quem não gostaria de ter em suas fileiras um criminoso, rico, bem armado e até então, muito querido em uma região ampla, situada estrategicamente às margens da Baía de Guanabara e ao lado da BR-101, uma das estradas de maior movimento do país, propícia a roubos de carros e cargas?
Confiança - Com o fim das operações especais das Forças Armadas no Estado do Rio, logo após as eleições e a posse do novo governo no Estado do Rio, 2N viu a 'maré' de repressão baixar e começou a colocar em prática seus planos de mudar de 'empresa' no tráfico de drogas. A nova vida incluiu até a oficialização de sua relação com a mãe de sua filha. Na manhã do domingo, dia 13 de janeiro de 2019, em um salão de festas do Complexo do Salgueiro, ele reuniu parte dos integrantes da futura Tropa do Corinthians: Xandinho, Ricardinho e Biscole, que deixaram de lado por algumas horas os fuzis e pistolas, e vestindo impecáveis ternos, sapatos e gravatas, acompanharam o 'chefe' e a então 'primeira dama' do tráfico selarem o matrimônio sob as bençãos de um pastor de uma igreja local.
Após a festa e uma breve lua de mel, 2N continuou colocando e prática seus planos de 'golpe e estado'. Prometendo um 'plano de carreira', com expectativa de lucros maiores e também poder. E atraiu para sua empreitada dois outros ocupantes de funções estratégicas no 'CV' e 'donos' de comunidades importantes na região: Carlos Henrique Barros de Oliveira, o Grisalho, oriundo do Complexo da Pedreira, santuário do 'TCP', no Rio, e na época, chefe do tráfico em 10 comunidades do Vila Três, Jardim Miriambi, Complexo do Anaia e parte de Santa Izabel; e Bruno de Souza Silva, o Pelanca, que já havia comandado o tráfico no Buraco do Boi, no Barreto, em Niterói, que estava à frente dos 'negócios' do CV na Vila Gabriela, em Itaboraí, depois de ficar preso entre 2016 e 2018.
Com 2N à frente, estava montada a Tropa do Corinthians, que durante sete meses,a partir do dia 25 de abril de 2019 colocou em 'cheque' o domínio do Comando Vermelho em várias comunidades de São Gonçalo, Niterói e Itaboraí.
Capítulo 3 - Após matar Schumaker, 'Tropa do Corinthians' tenta golpe de estado, se alia ao TCP, mas recusa apoio de milicianos